SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Economistas ouvidos pela reportagem defendem que o Congresso deixe claro na votação do pacote fiscal que a desvinculação de recursos de oito fundos públicos proposta pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seja usada para abater a dívida pública.
De acordo com esses especialistas, a intervenção do Congresso nesse ponto é necessária para evitar incertezas para as contas públicas.
A medida, que consta no pacote anunciado pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda), colocou em lados opostos o governo e especialistas em contas públicas e deixou no ar suspeitas do que estaria por trás da proposta.
Enquanto o governo diz que a desvinculação de recursos tem como objetivo facilitar a gestão orçamentária e gerar economia de despesas nos fundos nos quais há obrigação de aplicação de recursos, o mercado financeiro vê risco de a medida ter sido formulada para reforçar o caixa do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) e turbinar empréstimos com taxas subsidiadas.
O dinheiro liberado dos fundos pode ser usado para bancar despesas do orçamento. A medida foi incluída no PLP (Projeto de Lei Complementar) 210, protocolado na semana passada pelo líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE).
Hoje, o superávit financeiro dos fundos fica parado na conta única do Tesouro Nacional, onde está depositado o dinheiro do governo. Na prática, o Tesouro tem a verba em caixa mas não pode gastar. Os recursos só podem ser utilizados nas áreas às quais o fundo está vinculado.
Pelo texto do projeto do governo, de 2025 a 2030 o superávit financeiro relativo a uma lista de oito fundos será de livre aplicação. São eles: FDD (Defesa de Direitos Difusos), Funad (Antidrogas), FNM ( Marinha Mercante), FNAC (Aviação Civil) e FUNSET (Segurança e Educação de Trânsito), além dos fundos do Exército, Aeronáutico e Naval. Em 2023, esses fundos tinham um saldo positivo parado de R$ 39 bilhões.
Técnicos do governo negam que a desvinculação do superávit dos fundos será feita para cobrir buraco em outras despesas. Eles explicam que a medida tem o objetivo de gerar menos dívida ao Tesouro Nacional e de usar os recursos que hoje ficam “congelados” nos fundos por conta das vinculações.
O governo diz que a medida é preventiva também para evitar impacto nas contas de decisões judiciais que obriguem o governo a orçar a despesa desses fundos, o que ocuparia espaço no orçamento. É o caso de uma decisão do STF (Supremo Tribunal do Federal) relativa ao FDD, voltado para reparar danos causados a bens, interesses difusos, coletivos, ao consumidor e ao meio ambiente.
Sem a desvinculação proposta no pacote, um integrante da equipe econômica calcula que o governo seria obrigado a orçar cerca de R$ 2,6 bilhões no orçamento de 2025 só para o FDD.
Para o economista Manoel Pires, coordenador do CPFO (Centro de Política Fiscal e Orçamento Público) do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), falta deixar mais claro no projeto de lei o que o governo pode fazer com o dinheiro desvinculado.
“A hipótese mais provável é que o governo use para pagar a despesa do orçamento já contratada para ganhar flexibilidade de caixa e para pagar a dívida. Eu acho que essas são as duas finalidades principais. Mas poderiam colocar no projeto”, diz ele.
Segundo o economista, com a confusão gerada em torno da medida, a tendência é os parlamentares fazerem esse ajuste no texto na hora da votação para deixar mais claro na lei o alcance da medida.
“Do jeito que está hoje, está completamente livre”, ressalta Pires. Consultado por diversos integrantes do mercado financeiro sobre a medida, o coordenador do CPFO diz que a preocupação maior que ronda os investidores é que o dinheiro seja usado para emprestar dinheiro ao BNDES.
Pires explica que, com a desvinculação, o Tesouro não precisará emitir dívida para pagar despesas e poderá, por exemplo, usar o superávit para gastos da Previdência Social.
“É como se eu tirasse dinheiro da poupança e botasse na conta corrente. A decisão de gastar é outra decisão. Essa é a decisão de como pagar o gasto. São coisas diferentes”, ressalta.
Para o pesquisador associado do Insper, Marcos Mendes, será bem-vinda uma medida para abater a dívida. “Se efetivamente o governo decidir usar a desvinculação dos fundos para pagar a dívida pública, será uma medida com uma mudança muito positiva na postura de política fiscal porque até agora as decisões tomadas foram no sentido de desvincular recursos para enviar para bancos públicos”, diz ele, que é um crítico ferrenho de medidas parafiscais (fora do Orçamento), como o uso do dinheiro dos fundos para irrigar os empréstimos do BNDES.
Mendes ressalta que a utilização do superávit para pagar dívida diminui a dívida porque o governo terá que se endividar menos para cobrir o déficit esperado. “É um dinheiro que estava parado na conta e você paga a dívida com isso”, afirma.
Na sua avaliação, outra forma positiva de utilizar esse dinheiro seria pagar despesa obrigatória. Mas com um detalhe: “Sem liberar dinheiro que seria usado para pagar as despesas obrigatórias para pagar outros gastos.”
“Se o governo usar esse dinheiro para pagar essas despesas obrigatórias, vai precisar ir ao mercado e pegar menos dinheiro”, explica.
Para Mendes, a pior forma de utilizar o superávit dos fundos é repassar para os bancos públicos, para essas instituições financeiras fazerem crédito. “Aí, perdeu-se a oportunidade de abater dívida pública ou de se endividar menos e está colocando um dinheiro que vai pressionar a demanda agregada, que vai expandir crédito”, diz.
“Se desvincular e mandar para o BNDES, ele faz o que quiser com esse dinheiro. Empresta em qualquer linha e o dinheiro sai rápido, desembolsa rápido”, prevê.
Ex-secretário do Tesouro e especialista em contas públicas, Jeferson Bittencourt diz que o Congresso poderá provocar uma reação positiva do mercado, se deixar claro no pacote fiscal a obrigação de abater a dívida.
“Não sei se por falta de compromisso, o governo não deixou claro que era para abater dívida, já que a mensagem é tão dicotômica: abater dívida, reação boa; deixar recursos livres para o BNDES emprestar, reação ruim”, sugere Bittencourt, que atualmente é chefe da área de macroeconomia da instituição financeira ASA.
ADRIANA FERNANDES / Folhapress