Dino apontou crise do Judiciário há mais de 20 anos e ajudou a criar CNJ

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando defendeu sua dissertação de mestrado em 2001 na Universidade Federal de Pernambuco, o então juiz federal Flávio Dino descreveu um cenário que o preocupava à época –e que continua bastante atual.

Falência da segurança pública, descrença no Judiciário, descalabro na saúde e na educação, falta de solução para a questão agrária e guerra fiscal entre estados eram alguns fatores que impulsionavam, na visão dele, um processo acelerado de mudanças na Constituição de 1988.

As 37 emendas constitucionais aprovadas até aquele momento espantavam Dino, que não poderia saber que, 22 anos depois, elas chegariam a 131 e ele se tornaria ministro da Justiça indicado para uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal), com sabatina no Senado marcada para esta quarta-feira (13).

Para Dino, hoje com 55 anos, aquela intensa atividade ‘desconstituinte’ (palavra dele) expressava um fenômeno mais amplo: uma crise do próprio Estado de Direito.

Haveria, segundo ele, uma falta de sintonia entre o Poder Judiciário dos países e a nova fase do capitalismo mundial, em que não só empresas e mercado financeiro mas também o crime organizado conseguem, na prática, ignorar as fronteiras nacionais.

No caso brasileiro, Dino aponta descompasso ainda maior, porque o país aprovou uma Constituição “que pressupunha e implicava um Estado fortemente intervencionista” bem quando “o ideário que o nega –denominado neoliberalismo— alcançou uma hegemonia aparentemente inabalável”.

Sobrava para o Judiciário, continua Dino, o grande peso desse desencontro, pois cabe à Justiça, e sobretudo ao STF, assegurar a observância das regras do jogo, mesmo que muitos dos atores políticos ou econômicos já não concordem muito com essas regras.

Com foco específico no Judiciário, Dino escreve em sua dissertação sobre três crises, das quais a primeira é de identidade: de um lado, juízes são chamados a intervir com cada vez mais frequência, enquanto de outro cada vez mais se exige um Estado mínimo.

A segunda crise, fruto da primeira, é de desempenho, e tem na lentidão da análise dos processos sua principal faceta.

Consequência das duas anteriores, a terceira crise é de imagem, e esta não pode ser minimizada. Como se trata de Poder não eleito, a legitimação democrática da Justiça se dá também por sua credibilidade.

Para Dino, a criação de um Conselho Nacional de Justiça (CNJ) era imprescindível para o Judiciário enfrentar as crises de desempenho e de imagem, embora tivesse pouca serventia quanto à identidade.

Em seu mestrado, o então juiz federal analisou as propostas sobre o tema que tramitaram no Brasil desde os anos 1970 até a emenda constitucional 45, que viria a ser aprovada em 2004 –a chamada emenda da reforma do Judiciário.

Ele também comparou as sugestões brasileiras com experiências internacionais (Itália, Portugal, Espanha e Argentina) e, mais importante, argumentou que a existência do CNJ não representaria violação a uma cláusula imutável da Constituição.

Em meio aos debates sobre o CNJ, muito se dizia que um órgão de controle externo do Judiciário configuraria o fim da independência desse Poder.

Dino rebate esse ponto de vista, dizendo que a separação rígida entre Legislativo, Executivo e Judiciário é apenas um mito. Recorrendo a autores clássicos do liberalismo, ele afirma que a ingerência parcial de um poder sobre o outro é bem-vinda, desde que observados limites.

Um desses limites, diz ele, é que cada Poder deve ter competência para regular as questões administrativas relativas a ele próprio; outro é a composição do órgão de controle externo, que não poderia ser formado majoritariamente por integrantes do Executivo e do Legislativo.

De posse desse conhecimento teórico, Dino foi à luta. Primeiro como presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e depois como membro da diretoria da entidade, ele influenciou a aprovação da reforma do Judiciário e a instalação do CNJ.

“Ele teve um papel fundamental”, diz o advogado Sérgio Renault, secretário da Reforma do Judiciário de 2003 a 2005. “Ele tinha uma liderança muito grande, era muito interessado na aprovação da emenda e era muito ativo.”

Para Renault, aquela foi uma janela de oportunidade ímpar, “com pessoas importantes em cargos importantes”. Ele destaca Márcio Thomaz Bastos, primeiro ministro da Justiça nomeado por Lula (PT); Nelson Jobim, que presidiu o STF de 2004 a 2006; e o próprio Flávio Dino.

Quando o CNJ foi instalado em 14 de junho de 2005, Jobim foi seu primeiro presidente, e Dino, seu secretário-geral. Coube sobretudo a eles elaborar o regimento do novo órgão.

Para o advogado Luciano Godoy, que foi juiz federal de 1998 a 2006 e vice-presidente da Ajufe de 2002 a 2004, Dino sempre teve essa vocação para o debate público.

“Antes, a Ajufe era corporativista, muito voltada para os interesses dos juízes”, diz Godoy, para quem isso muda de figura quando o grupo do qual Dino fazia parte vence a eleição da entidade.

“Na gestão dele, em particular, ele tinha uma visão, que eu acho bastante acertada, de pôr a Ajufe para participar do debate da sociedade, atuar nas pautas de interesse coletivo.”

Nessa época surgiram iniciativas como o programa “Justiça para Todos”, que buscava tornar o Judiciário mais acessível por meio da TV Justiça, e a proposta de informatização do processo judicial, por exemplo.

Em 2004, quando o grupo de Dino ainda liderava a Ajufe, foi celebrado o primeiro pacto republicano entre os três Poderes, com a finalidade de aperfeiçoar as instituições.

Para quem conheceu Dino no início da carreira, nada em sua trajetória soa fora do lugar. É o caso de José Henrique Guaracy, advogado e juiz federal aposentado.

“Somos oriundos do mesmo concurso. Assim que tomamos posse, ficamos 10 ou 12 dias num curso preparatório. Deu para ver que ele era extremamente inteligente, preparado, articulado, determinado”, diz Guaracy, aprovado em sexto lugar, enquanto Dino ficou em primeiro.

Em 1994, quando foi aprovado para juiz federal, Dino também começou a dar aulas na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Permaneceu até 2002, quando passou a lecionar na Universidade de Brasília (UnB).

Interrompeu os voos acadêmicos, contudo, em 2006, quando se tornou deputado federal pelo PC do B. Deixou como principal legado, além de seu mestrado sobre o CNJ, o livro “Crimes e Infrações Administrativas Ambientais”.

*

A TRAJETÓRIA DE FLÁVIO DINO, 55

– 1984 – presidente do Grêmio Estudantil Coelho Neto, do Colégio Marista

– 1987-1988 – coordenador-geral do Diretório Central dos Estudantes da UFMA

– 1990 – forma-se em direito na UFMA

– 1991-1993 – secretário da Ordem dos Advogados do Brasil/Comissão de Direitos Humanos, em São Luís (MA)

– 1994 – aprovado em primeiro lugar no concurso de juiz federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com posse em sessão solene de 30 de maio

– 1994-2002 – professor da UFMA

– 1998-2000 – vice-presidente da Ajufe

– 2000-2002 – presidente da Ajufe

– 2000 – membro do Conselho da Justiça Federal

– 2001 – aprovado no mestrado em direito público pela UFPE, com a dissertação “Autogoverno e controle do Judiciário no Brasil – A proposta de criação do Conselho Nacional de Justiça”

– 2002-2004 – diretor de Assuntos Legislativos da Ajufe

– 2002-2006 – professor da UnB

– 2005-2006 – secretário-geral do CNJ

– 2006 – deixa de ser juiz federal para se candidatar a deputado federal. É eleito pelo PC do B-MA

– 2008 – derrotado em eleição para prefeito de São Luís

– 2010 – derrotado em eleição para governador do Maranhão

– 2011-2014 – presidente da Embratur

– 2015-2022 – governador do Maranhão por dois mandatos

– 2022 – eleito senador da República pelo PSB-MA

– 2023 – ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Lula (PT)

ENTENDA SABATINA PARA O STF

Indicação

Flávio Dino foi indicado por Lula ao STF em 27 de novembro para ocupar a vaga de Rosa Weber, que se aposentou da corte em 30 de setembro

Sabatina

As sabatinas de Dino e de Paulo Gonet, indicado de Lula à PGR, serão feitas ao mesmo tempo pela CCJ; senadores poderão fazer perguntas aos dois concomitantemente

Perguntas

Dino pode ser questionado sobre sua atuação política, o 8 de janeiro, além do caso da esposa de traficante no Ministério da Justiça e a citação em delações da Odebrecht

Votação

Dino precisa ser aprovado pela CCJ e pelo plenário do Senado com maioria absoluta —são necessários 14 dos 27 senadores da comissão e 41 de 81 no plenário

UIRÁ MACHADO / Folhapress

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