SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os filmes de Petrus Cariry têm uma densidade rara no cinema contemporâneo brasileiro. Cada imagem deles indica um estudo, um preparo, por vezes um mergulho na história do cinema.
Filho de Rosemberg Cariry, o cearense Petrus talvez seja, entre todos os diretores brasileiros revelados nos últimos anos, aquele que mais fielmente pensa na unidade de imagem, que no jargão cinematográfico costuma ser chamada de plano, como elemento que pode fortalecer o todo.
Daí que cada quadro de seus filmes tende a ser uma pintura, cada composição reveladora de um mundo plástico e de uma ideia de beleza cinematográfica.
“Mais Pesado que o Céu”, seu mais recente longa, vencedor de quatro kikitos no Festival de Gramado de 2023, não foge à regra. As paisagens do sul do Ceará têm o tratamento de imagem que merecem. Certos momentos lembram os filmes mais pictóricos de Werner Herzog.
Desta vez Petrus está mais focado na trama, o que pode inicialmente decepcionar, até entendermos melhor o que está em jogo. É uma história de andarilhos, fugitivos dos grandes centros ou da pandemia.
Teresa, interpretada por Ana Luiza Rios, tenta chegar a Fortaleza pegando caronas. Do mesmo jeito está Antônio, personagem de Matheus Nachtergaele, que depende da boa vontade de caminhoneiros para seguir em frente até uma cidade piauiense onde deve trabalhar com caranguejos.
Logo no início, ao chegar a uma represa, Teresa encontra um bebê abandonado em um pequeno barco. Por algum instinto materno, ela o toma como seu.
Antônio a encontra com o bebê no colo, e eles se unem em suas errâncias, ao menos até certo ponto. Ambos têm a mesma cidade em comum no passado: Jaguaribara, no Ceará, onde foram felizes, sem terem se conhecido. Parte da cidade agora está submersa pela represa.
São personagens à deriva, com passado misterioso e sem futuro, tornados mais estranhos e perdidos pelo nível da encenação de Petrus Cariry. Irão seguir juntos? Talvez. Os perdidos costumam ficar juntos. Ou não, pois na perdição não tomamos as melhores decisões.
Na verdade, nada indica que uma possível união entre eles irá prosperar. Nem que irão mesmo até o fim do caminho. Eles ficam um tempo num espaço abandonado no tempo: um posto, a casa de uma mulher solitária, uma casa vazia, uma estrada pouco movimentada.
Antônio parece muito ligado ao bebê. Veste um monte de roupas mesmo debaixo de calor intenso. Teresa parece ainda mais indecisa, e desde o início é a mais misteriosa. Não se deve, contudo, menosprezar a força do acaso que os juntou.
Mas eles estão em condição de miséria. Quando Teresa é obrigada a descer o nível para que o bebê possa comer, entra em contato com o tipo de homem que infelizmente tem aos montes no Brasil, homens que entendem a mulher como um capacho que não vale nada, a não ser como objeto de prazer.
Nesses momentos o filme entra na crítica mais direta à sociedade machista brasileira e, pelo modo direto e pouco inventivo com que mostra a desgraça que nos cerca, perde um pouco a força.
No país dos feminicídios, coisas como a masculinidade tóxica se tornam óbvias demais para servirem de muleta da dramaturgia. Por sorte, Petrus Cariry é um dos grandes pensadores da imagem no cinema contemporâneo brasileiro.
Mesmo sendo mais focado numa trama, o diretor não abdica do rigor da encenação. O espaço horizontalizado, bem diferente da verticalização à Pedro Costa do longa que o revelou, “O Grão”, de 2007, é muito bem pensado, num belo jogo de luz e sombra.
O tempo dilatado reforça a opção pela contemplação, abrindo-se a uma dramaturgia mais convencional quando é necessário reforçar algum ponto da trama.
Após alternar um cinema de poesia, nem sempre levado aos últimos limites, e alguns documentários ensaísticos que se aproximam mais de uma ideia convencional de cinema, Petrus Cariry parece buscar uma outra via, diferente da que buscou, sem dar prosseguimento, em “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois”, de 2015, embora seja outro filme do sangue espirrado.
Nesta via que parece juntar o desejo estético à necessidade de falar com um público mais amplo, o diretor chega a seu filme de maturidade. E no fim das contas, não faz muitas concessões, mantendo viva sua verve artística.
Mais Pesado que o Céu
Onde: Nos cinemas
Elenco: Matheus Nachtergaele, Ana Luiza Rios, Silvia Buarque
Produção: Brasil, 2023
Direção: Petrus Cariry
Avaliação: *Muito bom*
SÉRGIO ALPENDRE / Folhapress