SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Liberdade, igualdade, fraternidade. O lema revolucionário da França, inscrito na Constituição do país, “é apenas uma ideia até que se lute o suficiente para torná-la real e concreta para todos os cidadãos –um trabalho que a França ainda precisa fazer”. É o que pensa Élisabeth Moreno, ex-ministra francesa da Igualdade de Gênero, Diversidade e Igualdade de Oportunidades (2020-2022).
Ela se refere tanto às discriminações mais comuns mundo afora, como raça, gênero, religião, orientação sexual e contra pessoas com deficiência, quanto à onda de antissemitismo que emergiu na França, e em vários outros países, com a guerra Israel-Hamas.
“A razão pela qual abordo a discriminação contra judeus e contra negros da mesma forma é simplesmente porque eles são a mesma coisa”, afirma Moreno, que vem ao Brasil no fim do mês para participar do 3º Fórum Global contra o Racismo e a Discriminação, da Unesco.
Ela fala por experiência própria. Africana de Cabo Verde, filha de pais analfabetos que migraram para a França, cresceu num conjunto habitacional típico das classes pobres do país e costuma dizer que reunia todas as impossibilidades de um futuro mais próspero.
Conseguiu formar-se em Letras, fez mestrado em direito comercial e abriu sua própria empresa “porque ninguém queria me dar um emprego”.
Dali, saltou para o mundo das grandes corporações. Trabalhou na Dell, foi presidente da Lenovo na França, quando instituiu um comitê de gerenciamento composto em igual proporção de homens e mulheres, e liderou a operação da Hewlett-Packard na África.
Após a experiência na vida pública, voltou ao setor privado. Integra hoje o Conselho de Diversidade, Equidade e Inclusão da Sanofi, gigante farmacêutica francesa.
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*Folha -* Pesquisa Ipsos realizada na França apontou que 91% dos negros no país foram alvo de discriminação racial. Como ex-ministra francesa da Igualdade, como avalia esse dado?
*Élisabeth Moreno -* Nasci em Cabo Verde, cresci na França, e trabalhei em quatro continentes. Posso dizer que vivi todos os tipos de discriminação, incluindo o racismo, na Europa, na África, no Oriente Médio, nas Américas e na China. O que quero dizer com isso é que, onde quer que haja um ser humano há racismo. Porque há uma necessidade no ser humano de tirar poder do outro para se sentir mais forte, mais poderoso, melhor.
Agora, o conflito entre Israel e Palestina despertou na França, e em outras partes do mundo, outro tipo horrível de racismo: o antissemitismo. É horrível porque, assim como as pessoas negras, os judeus pagaram com suas vidas por essa discriminação. O nazismo vem do racismo, assim como a história da escravidão e da colonização dos negros também vem do racismo.
*Folha -* Como combater essas formas de racismo?
*Élisabeth Moreno -* A razão pela qual abordo a discriminação contra judeus e contra negros da mesma forma é simplesmente porque eles são a mesma coisa. É preconceito, estereótipo e viés por meio dos quais se classificam e se hierarquizam as pessoas.
Se você é uma mulher negra americana, será mais considerada do que uma negra africana. Imagine se você for uma mulher negra africana, deficiente, lésbica e de origem humilde? Pense em todas as limitações mentais e barreiras que você teria por conta dessas discriminações. Para mim, hoje, o racismo é a pior pandemia do planeta. É inacreditável que, com todo o desenvolvimento humano, técnico e científico dos dias atuais, ainda não somos capazes de ensinar nossas crianças que todo ser humano precisa de respeito e dignidade.
Um dos problemas da França em relação ao racismo é que a mídia não trata muito deste tema, exceto quando alguém é morto, quando há um drama. E é super importante fazer pedagogia sobre discriminações porque elas não são naturais. Nelson Mandela disse que ninguém nasce com ódio no coração e que, se você pode aprender a odiar, pode aprender a amar também. Se todos ensinassem seus filhos como respeitar os outros, não precisaríamos de leis contra discriminações.
*Folha -* Essas leis contra discriminações funcionam?
*Élisabeth Moreno -* A França, por exemplo, é o país dos direitos humanos e traz, na sua Constituição, o princípio do universalismo. Todo mundo deve ser tratado, respeitado e considerado da mesma forma, independentemente de seu gênero, cor de pele, religião ou qualquer outra coisa. Aqui existem 25 tópicos de discriminação proibidos. E, ainda assim, 91% das pessoas negras afirmam sofrer racismo. O problema é que apenas 2% das reclamações sobre discriminação chegam ao fim do processo. A maioria delas é desclassificada. Então, não é porque está no papel que funciona. Precisamos garantir que essas leis sejam aplicadas. Se não punirmos quem as desrespeita nem ensinarmos o respeito à diferença para crianças, daqui a cem anos nossos filhos e netos terão essa mesma conversa.
*Folha -* A sra. teve uma trajetória bem-sucedida no setor privado antes de ocupar o cargo de ministra, no qual criou um index de diversidade e equidade para corporações francesas. Como lidar com essa questão em empresas?
*Élisabeth Moreno -* É muito difícil abordar a discriminação racial no setor privado porque você rapidamente tem pessoas brancas dizendo: “Vidas brancas importam”. Sim, claro que vidas brancas importam, mas você vê muitas pessoas sendo mortas porque são brancas? Não. Então, quando dizemos “vidas negras importam”, não significa que vidas brancas não importam. Significa apenas que as pessoas negras precisam de mais atenção porque sofrem mais discriminação. Eu agora me juntei à Sanofi porque é a primeira grande corporação na França que decidiu ter um conselho de diversidade, equidade e inclusão, o que é muito corajoso.
*Folha -* Como a sra. se dedicou a promover a equidade de gênero e a emancipação financeira das mulheres?
*Élisabeth Moreno -* A discriminação de gênero é, para mim, a mãe de todos os tipos de discriminação, porque as mulheres compõem 51% da população da Terra. Elas são mais pobres que os homens em todo o mundo, desde os países mais poderosos até os mais pobres, porque seus empregos não são considerados como deveriam. Elas têm que cuidar de suas casas, além de seus empregos, onde ganham menos que os homens. Então, têm dois ou três empregos. Quando uma criança fica doente, param de trabalhar. Quando seus pais ficam doentes, param de trabalhar para cuidar deles. Se considerássemos todo esse trabalho não remunerado e não reconhecido, as mulheres seriam mais ricas. Mas eu sabia que seria um desafio abordar esse ponto. Então, decidi garantir que as mulheres ocupassem todas as posições de decisão e poder possíveis nas empresas.
*Folha -* Como?
*Élisabeth Moreno -* Na França, tínhamos uma lei que obrigava os conselhos das empresas a ter uma cota de mulheres. Em dez anos, passamos de 9% de mulheres em conselhos para 45%. Somos os melhores do mundo nisso. O problema é que esse sucesso não chegou aos conselhos executivos. Se queremos que as coisas mudem, precisamos ter mulheres onde as decisões são tomadas. Então criamos a mesma lei dos conselhos para o nível executivo. Também decidimos que mulheres que trabalham têm que colocar seu dinheiro em uma conta bancária em seu nome. Há mulheres que trabalham e põem o dinheiro na conta do marido. Se algo dá errado, perdem tudo. Mulheres emancipadas economicamente sofrem menos violência. Isso não significa que mulheres com cargos altos não sofram violência doméstica. Mas, se tiverem seu próprio dinheiro, podem sair dessa situação com menos dificuldade.
ÉLISABETH MORENO
Nascida em Cabo Verde, na África, em 1970, filha de pais analfabetos que migraram para a França quando ela ainda era criança, Elisabeth Moreno fez Letras, mestrado em direito comercial na Universidade Paris 12 e MBA na Escola de Negócios de Mannheim, na Alemanha. Trabalhou em grandes corporações da área de computação, como Dell, Lenovo e Hewlett-Packard, antes de integrar o governo do presidente Emmanuel Macron como ministra da Igualdade de Gênero, Diversidade e Igualdade de Oportunidades durante a gestão do primeiro-ministro Jean Castex (2020-2022). Fundou a associação O Poder do Vínculo Humano e é membro do Conselho de Diversidade, Equidade e Inclusão da gigante farmacêutica Sanofi.
FERNANDA MENA / Folhapress