BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A solução para os altos juros do rotativo do cartão de crédito com taxa média de 437,3% ao ano esbarra em interesses conflitantes de diferentes segmentos do mercado financeiro e em uma intensa disputa que vem sendo travada nos bastidores nas negociações com o governo Lula (PT), o Banco Central e o Congresso Nacional.
Para mapear esse jogo, no qual qualquer movimento precipitado pode levar a um desequilíbrio que teria como principal prejudicado o consumidor final, a reportagem conversou com representantes de bancos, varejo e diferentes setores do mercado de cartões.
Foram três perguntas feitas a cada um deles para entender quais são as propostas de cada setor para o rotativo, o principal risco observado nas discussões em andamento e o provável caminho para avanço nas negociações.
Febraban (Federação Brasileira de Bancos), Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços, que representa parte das empresas de maquinhas de pagamento), Abranet (Associação Brasileira de Internet, que representa outras empresas de maquininhas) e IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo) são unânimes em reconhecer a necessidade de mudanças no rotativo do cartão, embora refutem o tabelamento de juros para a modalidade.
O grande entrave está no esboço dessa reformulação.
De um lado, os bancos defendem que alterações no rotativo passem por um redesenho do parcelamento de compras sem juros. De outro, empresas de maquininhas de cartão contestam a correlação feita entre os dois temas e defendem que o parcelado sem juros não entre em pauta.
O grande varejo, por sua vez, admite uma limitação gradual nas compras parceladas sem juros, enquanto representantes da indústria do cartão, que inclui emissores e bandeiras, falam em correção de distorções e aperfeiçoamento da modalidade.
No Congresso, o relatório do deputado Alencar Santana (PT-SP) estipula um prazo de 90 dias para que, por autorregulação, seja definido um patamar menor de juros para o rotativo e para o crédito parcelado.
Se nada for feito, será aplicável um teto que limita a dívida ao dobro do montante original. O texto não aborda o parcelamento de compras sem juros.
Segundo o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a matéria poderá ser votada já na semana que vem. Apesar do andamento célere das tratativas, o debate ainda está longe de acabar.
Conheça o posicionamento dos atores envolvidos na negociação:
ISAAC SIDNEY, PRESIDENTE DA FEBRABAN
“O subsídio cruzado crescente entre os financiamentos com juros e sem juros é a principal causa-raiz dos altos juros do rotativo do cartão de crédito no Brasil. A Febraban propõe o encaminhamento de uma solução que reduza esses subsídios cruzados de forma estrutural.
A gente não trabalha com a hipótese de eliminação do parcelado sem juros, mas com um redesenho na busca de um reequilíbrio econômico desta modalidade.
Há dois riscos no encaminhamento do debate.
O primeiro está em as discussões se limitarem a combater os sintomas, não as causas efetivas dos juros elevados do rotativo. Isso fará com que o sistema siga operando em um equilíbrio econômico frágil, com impactos relevantes para o endividamento das famílias e o risco de crédito, hoje todo concentrado nos bancos emissores, que suportam a elevada inadimplência do rotativo.
O segundo risco está na introdução de tetos arbitrários e artificiais para os juros no rotativo, medida que pode tornar uma parcela relevante dos cartões de crédito em produtos deficitários e inviáveis economicamente. Isso poderá levar à redução drástica e imediata da disponibilidade de crédito ao consumo.
As discussões seguem de forma célere, técnica e colaborativa, mas o tema é muito complexo e não há uma única solução. É ainda prematuro indicar a direção exata que a indústria terá.
A Febraban perseguirá um caminho que dilua o risco de crédito entre os elos da cadeia e elimine os subsídios cruzados.
Temos de, gradualmente, fazer um redesenho do crédito rotativo, mas também um aprimoramento do mecanismo de parcelado sem juros. Isso em uma transição sem rupturas do produto do cartão de crédito e de como ele se financia, para sairmos de um equilíbrio instável para estável e nos alinharmos ao padrão internacional.”
RICARDO VIEIRA, VICE-PRESIDENTE EXECUTIVO DA ABECS
“O grande receio da indústria é um tabelamento de juros. A gente tem muito medo de que uma mexida forte e drástica nas variáveis de receita induza a um desequilíbrio do sistema. Os impactos do reajuste, se não forem bem pensados, podem ser extremamente graves.
O melhor coordenador desse debate é o Banco Central, que é o regulador da indústria. Não existe uma solução única e mágica para a redução da taxa de juros.
Uma cesta de medidas precisa ser adotada. Uma das primeiras medidas da lista, que parece ser um denominador comum da indústria, é substituir o rotativo por um parcelamento automático dos débitos.
Para fazer isso, precisa de um desenvolvimento fortíssimo nas áreas de tecnologia, além de mudanças regulatórias. Precisa também de um amplo processo de comunicação à sociedade. O nível de reclamação junto a entidades de defesa do consumidor vai crescer em um primeiro momento de forma relevante.
Outra variável da equação é a portabilidade, que incentiva a concorrência. Mas a portabilidade por si só não resolve o problema, ela é mais um tijolo nessa construção.
Também defendemos um aperfeiçoamento da resolução 3.919, que define as regras para as tarifas que os emissores de cartão de crédito podem cobrar. A gente entende que o mundo mudou e diversos serviços estão contingenciados desde 2010. É uma frente que tem maturação para meados do ano que vem.
A Abecs é contra a eliminação do parcelado sem juros, mas entende que o seu aperfeiçoamento tem de ser colocado na mesa. Não tem missão predefinida de reduzir ou aumentar [quantidade de parcelas], mas coibir a utilização inadequada do produto.
Propomos a construção de um fórum amplo e técnico, separado por temas. O ideal é que sejam mostrados estudos e análises para que o regulador possa orientar o caminho.
O pior de tudo seria uma migração atabalhoada, com cada agente começando a fazer ajustes em função dos impactos que vem sofrendo. Seria o pior dos mundos.”
CAROL CONWAY, PRESIDENTE DA ABRANET
“Qualquer solução para o rotativo não passa por mexer nas compras parceladas sem juros. A gente não acha também que a alteração do rotativo passa pela mecânica do curto prazo. Pode diminuir o limite [de permanência] de 30 para 20 ou 5 dias, mas tem de ter um pequeno prazo para quem não quer entrar direto em um financiamento. Pode ser complexa a decisão de acabar 100% com o rotativo.
Tem a portabilidade de dívida. Hoje, quando o cliente entra no rotativo, ele não tem outra opção senão aceitar a taxa de juro que o próprio banco oferece.
Se tiver mais ofertas de taxas, isso pode ter um impacto positivo na redução dos juros pela competição.
A câmara de recebíveis também é uma opção muito boa. Se fizer isso no rotativo, cria um marketplace de dívida. Mesmo que o cliente queira portar a dívida sem estar em atraso, ele consegue. No mercado de recebíveis fez diferença em termos de competição para antecipação das vendas.
Em março de 2011, a taxa mensal de antecipação de vendas parcelada era de 2,53% ao mês dessa antecipação de recebíveis, com Selic de 0,92% ao mês, ou seja, 1,61% de spread.
Em maio de 2023, em um cenário de competição com as câmaras de recebíveis, a taxa de antecipação foi de 1,43% ao mês, com a Selic a 1,12% ao mês, ou seja, 0,31% de spread.
A solução pode passar pelo open finance, que está sendo construído pelo Banco Central para ser um grande provedor de informações e diminuir as assimetrias. Mas não necessariamente. Pode ser qualquer infraestrutura de rede que forneça informação e permita que os players briguem por isso.
O principal risco nas discussões é ter algum tipo de definição que diminua injustamente ou de forma não razoável a oferta de crédito. O melhor caminho é focar no que pode ser feito para diminuir o custo de quem atrasa [o pagamento] no cartão e para melhorar a concessão de crédito por meio do cartão.”
JORGE GONÇALVES FILHO, PRESIDENTE DO IDV
“Não somos favoráveis a qualquer tipo de tabelamento de juros. O rotativo deveria ser extinto e deveriam ser criadas novas formas de financiar o saldo não pago do cartão.
Essas novas formas teriam de estimular a competição entre instituições financeiras, isso naturalmente iria gerar uma oferta de menor juros.
O principal risco nas discussões em andamento é querer vincular a solução para menores juros no rotativo à extinção da venda com parcelado sem juros. O que não concordamos.
A solução está em encontrar um equilíbrio entre as diversas funcionalidades do uso do cartão como meio de pagamento.
Concordamos que o parcelamento sem juros acabou ficando com prazos muito longos. Era algo que nasceu para substituir o cheque pré-datado e que foi crescendo em quantidade de parcelas.
Entendemos que pode caminhar para uma redução gradual dos prazos nos próximos dois anos, porém mantendo o mínimo de parcelas no parcelado sem juros, porque ele é importante para o médio e pequeno varejo.
O grande varejo tem recursos e consegue esticar o parcelado sem juros por prazo longo. Médio e pequeno não têm esse recurso. Então, é bom também para o médio e para o pequeno [varejo] uma redução, ficando dentro de um prazo de seis vezes no máximo.
Essa coordenação tem de ser do Banco Central, que tem um papel de neutralidade.
Acho importante nesse rearranjo do setor fomentar o crédito para consumo com novas linhas, com juros em que a parcela caiba no bolso do consumidor.
Também tinha de estar nesse contexto um amplo programa de educação financeira. Por exemplo, quem for recuperar crédito deveria passar por um curso pedagógico para conscientização.”
NATHALIA GARCIA / Folhapress