SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos meses que antecederam a sua cúpula anual, que ocorrerá nesta terça (11) e quarta (12), a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) parecia se preparar para um evento algo triunfalista.
A Guerra da Ucrânia havia garantido a refundação da aliança militar criada em 1949 para conter mesma Moscou que hoje assusta, Kiev preparava uma contraofensiva decisiva armada enfim com tanques ocidentais, a Finlândia havia virado seu 31º membro, e logo Volodimir Zelenski poderia comemorar a adesão ao clube.
Japão, Coreia do Sul e Austrália voltaram a ser convidados de honra do evento, enfatizando que a Guerra Fria 2.0 entre Estados Unidos, que somam 70% do gasto militar do bloco, e a China é parte da missão da Otan. Por fim, evento ocorrerá em Vilnius, bela capital de arquitetura barroca a 30 km de uma barreira de arame farpado que marca a fronteira da Lituânia com Belarus, hoje um protetorado de Vladimir Putin.
Tal demonstração de força foi ofuscada pela realidade, sobrando a Putin ser o denominador comum das notícias positivas, por assim dizer, do encontro. Deve haver mais anúncio de armas para a Ucrânia, talvez com promessas mais firmes acerca de caças.
Pode haver avanço na reestruturação dos estoques bélicos europeus e o início do reforço do flanco leste, que hoje tem 10 mil soldados. O plano é chegar a talvez 50 mil. Também há expectativa de elevar de 40 mil para 300 mil o número de militares em prontidão no continente, mas isso parece mais especulativo.
A agenda incerta é mais ampla, contudo, apesar de o ainda misterioso motim mercenário contra Putin ter arranhado a imagem do presidente russo. A contraofensiva ucraniana, iniciada em 4 de junho, prossegue na sua fase inicial, procurando fraquezas nas linhas russas dos 20% do território ocupado desde a invasão de fevereiro de 2022.. Aqui e ali, autoridades contemporizam, mas Kiev já assumiu um discurso taciturno, exigindo mais armas do Ocidente.
Com isso, o americano Joe Biden tomou uma decisão que se provou problemática: aceitou enviar munições de fragmentação, proibidas em 23 dos 31 países da Otan, para a Ucrânia usar contra os russos. Noves fora que são armas particularmente brutais, o fato de que as bombinhas espalhadas em grandes áreas nem sempre explodem, tornando-se um problema por décadas.
O presidente embarcou neste domingo (9) para o Reino Unido, o mais tradicional aliado americano na Otan, para uma visita prévia à cúpula. Londres hoje se alia aos membros do leste da aliança na agressividade ante a Rússia, afastando-se da maior prudência esposada por países maiores, como Alemanha e França.
O brexit também esfriou as relações através do canal da Mancha, e a tentativa do secretário de Defesa britânico, Ben Wallace, de substituir Jens Stoltenberg à frente da Otan foi um fracasso. Restou ao norueguês permanecer mais um ano no posto de secretário-geral.
Biden subiu no Air Force One apanhando de vários aliados europeus pela decisão de fornecer as bombas, ainda que tanto ucranianos como russos já as tenham usado no conflito. Foi simbolicamente criticado neste domingo pelo Cambodja, país que foi bombardeado com 2,8 milhões de toneladas de explosivos americanos, muitos desse tipo, de 1970 a 1973.
Mais importante, contudo, é o sinal de que as coisas não parecem estar indo bem para Zelenski, que deverá ser a estrela na quarta-feira, quando será criado o Conselho Otan-Ucrânia, a saída diplomática possível para a aliança vender ao mundo que um dia irá aceitar Kiev.
O problema é simples: pelo seu regramento, a aliança não pode aceitar um membro em guerra. Até porque isso implicaria entrar no conflito, já que o ataque a um integrante significa que todos têm de defendê-lo. Ou seja, começar a Terceira Guerra Mundial, nuclear ao fim.
Na cúpula de Bucareste de 2008, a Otan recuou de abrir o processo de adesão de Ucrânia e Geórgia, ex-repúblicas soviéticas, para não melindrar Putin. Mas deixou deixou o convite valendo, o que fez com que o russo atacasse o pequeno país no Cáucaso naquele ano e, em 2014, anexasse a Crimeia quando seu aliado no poder em Kiev foi derrubado.
Putin, que invadiu a Ucrânia ano passado com a mesma preocupação estratégica em mente, fracassou contudo em conter a expansão da Otan, como a adesão da Finlândia e seus 1.340 km de fronteira com a Rússia mostrou. A Suécia iria entrar junto, tanto que participa da cúpula, mas aí outras peculiaridades europeias se impuseram.
A Turquia de Recep Tayyip Erdogan, líder que conseguiu anunciar uma visita de Putin a seu país, membro da Otan, no mesmo dia em que recebeu Zelenski e provocou Moscou ao romper um acordo de exílio de comandantes neonazistas de Kiev, segue cobrando caro de Estocolmo a adesão. Quer ver extraditados os seus opositores abrigados no país nórdico. Nesta segunda (10) haverá uma tentativa prévia de resolver a questão, mas parece improvável.
Há igualmente problemas internos em relação ao gasto militar. A Europa declarou independência energética da Rússia em 2022, mas o fez após os países encherem seus depósitos de gás natural. O inverno fraco ajudou na economia, mas há dúvidas se não haverá uma nova pressão inflacionária na estação fria de 2023-2024.
Stoltenberg defende que todos os integrantes do clube tenham os 2% do Produto Interno Bruto gastos com defesa como piso, e não como a atual meta. Em 2022, apenas 7 dos então 30 membros conseguiram isso, embora todos (exceto Turquia) tenham aumentado seu gasto ante 2014, ano que mudou a percepção de risco na Europa.
Países menores, que têm o mesmo direito a voto dos outros, discordam da pressão e querem ajudar de outras maneiras, como disse à reportagem a ministra da Defesa portuguesa, Helena Carreiras.
Há questões diversas, não menos importantes. A Polônia quer que os EUA instalem em seu território ogivas nucleares táticas, de uso mais restrito, porque Putin fez o mesmo com a vizinha Belarus.
Por fim, a China. Na reunião do ano passado, a Otan foi assertiva ao incluir Pequim nas suas preocupações estratégicas, uma pressão dos EUA. Mas os chineses compram 10% das exportações europeias e vendem 20% do que os países do continente importam. Os líderes da França e da Alemanha estiveram recentemente com Xi Jinping, e mesmo Biden está em um momento de aproximação com os rivais.
Apesar da presença de japoneses, australianos e sul-coreanos, parece mais provável que o tom belicista de 2022 seja mais direcionado ao principal aliado de Xi, Putin, com talvez algum pedido de gentileza para o chinês intervir em favor da paz.
IGOR GIELOW / Folhapress