Dividido, novo Parlamento simboliza crise política na França após fim de ‘trégua olímpica’

PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Os anéis olímpicos foram retirados da Torre Eiffel na madrugada de sexta-feira (27), em um ato que simbolizou o fim da trégua na política francesa durante os Jogos de Paris-2024. Na próxima terça (1º), a primeira sessão da Assembleia Nacional eleita em julho será aberta por um discurso do novo primeiro-ministro, Michel Barnier, e seu ministério de desconhecidos, empossado na última segunda (23).

“Até eu, que sou cientista político e faço isso o ano inteiro, tive que pesquisar quem era a metade dos ministros”, diz Olivier Costa, professor da prestigiosa faculdade Sciences Po. Foi o gabinete que Barnier pôde colocar de pé com sua frágil coalizão de centro-direita. Com muita boa vontade, ela abarca 240 deputados, 49 abaixo da maioria absoluta.

É com eles que os franceses provavelmente terão que conviver, pelo menos até junho do ano que vem —a Constituição impede o Executivo de dissolver o Parlamento duas vezes em menos de um ano— e talvez até 2027, ano da próxima eleição presidencial.

O Legislativo está partido em três blocos: esquerda, centro-direita e ultradireita. Todos estão distantes da maioria absoluta. Foi o resultado das eleições convocadas inesperadamente, em junho, pelo presidente Emmanuel Macron.

O bloco mais votado foi a esquerdista Nova Frente Popular (NFP), montada às pressas. Após dois meses de procrastinação, Macron rejeitou o nome proposto pela aliança e encarregou o veterano Barnier, 73, de montar um gabinete com o centro e parte da direita.

Barnier pertence à direita tradicional, herdeira de Charles de Gaulle (1890-1970) e de Jacques Chirac (1932-2019). Outrora poderoso, seu partido, o Republicanos, perdeu eleitorado para a ultradireita e teve míseros 5% dos votos em julho.

As divergências internas da coalizão transparecem no discurso de seus próprios membros. “Manterei minha liberdade de voto, plena e integral”, disse à Folha Éléonore Caroit, deputada do centrista Juntos!, partido de Macron. Para ela, o novo gabinete “está um pouco mais à direita do que seria desejável”.

A rigor, Barnier consegue legislar sem a maioria absoluta. Um mecanismo da Constituição, conhecido pelos números do artigo e da alínea, “49-3”, autoriza o governo a impor sem votação as leis orçamentárias e, uma única vez por ano, outra lei.

É provável que Barnier recorra ao 49-3 para aprovar o orçamento de 2025. Ele anunciou a intenção de reduzir o déficit público, hoje próximo dos 6% do PIB, e a dívida pública, acima dos 110% do PIB. Mas afirmou que não mexerá nos impostos dos mais pobres e da classe média. O presidente da federação do patronato, Patrick Martin, disse que as empresas aceitam pagar parte da conta, mas “temporariamente e em baixa proporção”.

A outra bala de prata do 49-3 pode ser gasta endurecendo a política em relação aos imigrantes, que voltou ao topo da preocupação dos franceses após um caso macabro. Uma universitária de 19 anos foi morta e enterrada em um dos maiores parques de Paris, o Bois de Boulogne. Na terça-feira (24), um suspeito foi preso na Suíça: um imigrante marroquino em situação irregular, que cumpria pena em regime aberto por estupro e já tinha uma ordem de expulsão da França, nunca executada.

Os canais de notícias ligados à ultradireita deram ampla cobertura ao velório da jovem assassinada. O novo ministro do Interior, Bruno Retailleau, aproveitou o caso para defender leis mais severas para expulsar imigrantes.

Nesta terça, Barnier fará sua “declaração de política geral” diante do Parlamento. É quando o novo primeiro-ministro expõe seu programa de governo. A esquerda, que entrou com um pedido de impeachment de Macron, talvez proponha uma moção de censura a Barnier. Nem um nem outro devem prosperar, pois precisariam dos votos do maior partido da ultradireita, a Reunião Nacional (RN), que decidiu deixar Barnier governar, pelo menos no curto prazo.

Trata-se de um cálculo estratégico da principal líder da RN, Marine Le Pen, de olho na eleição presidencial de 2027. Le Pen pode ser uma das maiores beneficiadas pela crise, segundo Olivier Costa. “Ela poderá dizer: ‘Esse governo foi péssimo, está na hora de mudar.'” À esquerda, outro nome com ambição presidencial, Jean-Luc Mélenchon, teria seguido a mesma estratégia, preferindo o papel de líder de oposição até 2027.

A imprensa francesa vem desenterrando farto material constrangedor sobre os ministros neófitos. Retailleau (Interior) foi acusado de fraudar o resultado de um reality show, longínquos 27 anos atrás. Patrick Hetzel (Ensino Superior) defendeu o uso de cloroquina durante a pandemia. Anne Genetet (Educação) fundou uma empresa que recomendava a franceses em Singapura não contratarem domésticas acostumadas com patrões ocidentais, mais “difíceis de gerir”.

ANDRÉ FONTENELLE / Folhapress

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