BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Diretora de Assuntos Internacionais e de Gestão de Riscos Corporativos do Banco Central, Fernanda Guardado diz que críticas aos juros fazem parte do trabalho, mas vê como injusta a interpretação de que o Copom (Comitê de Política Monetária) tem uma atuação política.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, a diretora conta ter integrado o grupo mais cauteloso no último encontro do colegiado quanto à sinalização dos passos futuros do BC, mas ressalta que houve nuances mesmo entre os membros que defendiam indicar a possibilidade de corte de juros em agosto se a inflação continuar em queda.
De acordo com Guardado, a atuação do Copom está mais dependente dos dados desde junho, e as decisões sobre a flexibilização (ou não) da política monetária e a magnitude dos próximos movimentos serão tomadas a cada reunião. “As nossas projeções de inflação são a principal bússola”, diz.
Na visão dela, a definição do CMN (Conselho Monetário Nacional) sobre as metas de inflação, com alvo contínuo de 3% a partir de 2025, é “uma evolução para o Brasil” e o risco fiscal do país diminuiu ao longo do último semestre.
No âmbito internacional, a diretora diz que o SML (Sistema de Pagamentos em Moeda Local) tem potencial de crescimento nas transações envolvendo os países do Mercosul, mas pondera que sua expansão esbarra em limitações. Já o projeto de criação de uma moeda comum, segundo ela, não é muito próximo da realidade hoje.
PERGUNTA – Na ata do Copom, houve divergência, com a maioria querendo sinalizar um possível corte de juros em agosto e a minoria mais cautelosa. Em qual grupo a sra. se encaixa?
FERNANDA GUARDADO – Eu estava no grupo mais cauteloso. A gente está em um ponto que ainda inspira alguma cautela. A divergência foi sobre uma sinalização enfática em relação aos próximos passos. O comunicado é o consenso do grupo. Na ata, a gente deixa claro quais são os debates e as divergências. Havia nuances dentro da própria maioria que achava que deveria ter uma sinalização de que poderia haver uma flexibilização em agosto.
P. – O Copom condicionou seus passos futuros aos dados. Qual é o fator mais importante nesse momento para a decisão dos juros?
FG – A partir de junho, o comitê entrou no modo mais dependente dos dados. No jargão, chamamos de data-dependent. A gente vai levar em consideração todos os dados, os de inflação corrente, avaliar como estão vindo em relação ao que a gente espera, se vai mudar de alguma forma relevante as nossas próprias projeções. As nossas projeções de inflação são a nossa principal bússola de atuação. E também ver o comportamento das expectativas. Esse conjunto de fatores vai embasar a discussão de agosto. Quando a gente escreveu o comunicado, havia uma decisão do colegiado por flexibilizar a comunicação. Isso foi feito e acho que foi bem compreendido pelo mercado.
P. – Houve ruído na leitura do comunicado e da ata do Copom. Há falha de comunicação?
FG – Não. Os economistas e o mercado, que costumam acompanhar o linguajar do BC há bastante tempo, entenderam que havia uma flexibilização na comunicação. Inícios e finais de ciclo, ou momentos em que começa a haver um pouco mais de divergência entre os membros de qualquer colegiado, são mais complicados. É difícil colocar em um documento curto todas as nuances de visão, isso só pode ficar claro mesmo na ata.
P. – No próximo Copom, teremos a chegada dos primeiros indicados pelo governo Lula ao BC, como o ex-secretário Gabriel Galípolo, e um aumento da expectativa pela redução dos juros. Como a sra. vê essa correlação?
FG – A expectativa pelo corte de juros é natural. A gente vai receber muito bem, de braços abertos, tanto o Ailton [Santos], que é prata da casa, quanto o [Gabriel] Galípolo. Vamos ver como vai ser a discussão no comitê. Vão ter opiniões diversas, vamos analisar todos os dados com muita profundidade. Essa expectativa que permeia o mercado tem mais a ver com o ciclo do que com as pessoas.
P. – Embora o BC enfatize que toma decisões técnicas, elas também não são políticas em certa medida? Como vê o assunto?
FG – Acho bastante injusta essa interpretação de que o Copom tem uma atuação com qualquer conotação política. O Banco Central do Brasil é amplamente reconhecido por seus pares, por investidores internacionais e pelas próprias agências de rating. O BC age de maneira técnica, a gente teve uma atuação muito contundente no ano passado com o intuito de trazer a inflação em direção às metas a despeito de ser um ano eleitoral. A gente continua agindo pelo melhor resultado de longo prazo para a economia. O Congresso outorgou a autonomia para que o BC pudesse ter uma atuação independente de pressões políticas e de modo a tomar decisões que não são só dos juros, são de regulação, de supervisão, de competição no mercado. O BC é muito mais do que só a decisão de juros.
P. – Fiscal é uma preocupação menor hoje?
FG – Sim. O arcabouço fiscal apresentado pelo ministro [Fernando] Haddad teve o papel de eliminar os riscos de cauda [remanescentes] do cenário fiscal. O ministro tem apresentado um compromisso bastante grande em tentar entregar as metas que ele se propôs. Tem o pacote de receitas ainda sendo negociado, vamos esperar. Mas acho que o risco fiscal diminuiu ao longo do semestre.
P. – Como tem sido trabalhar com a pressão das críticas sobre a atuação do BC?
FG – Somos um órgão de Estado e temos que prestar contas. Cabe a nós, diretores, que ganhamos nosso mandato do Senado Federal, explicar o que a gente está fazendo e como está desempenhando nosso papel. Críticas à política de juros e opiniões diferentes fazem parte do trabalho.
P – A confirmação da meta de inflação em 3% dá mais conforto ao BC para iniciar a redução de juros em agosto?
FG – Essa decisão aprimora o regime de metas e nos alinha com os nossos pares internacionais. É uma evolução para o Brasil. Essa era também a solução defendida pelo BC. Foi uma decisão bem recebida pelos economistas e pela sociedade e que parece estar tendo impacto nas expectativas de inflação de longo prazo.
P. – Apesar de o BC ter citado um possível processo “parcimonioso” de inflexão de juros, o mercado reduziu a previsão da Selic a 12% em 2023. É possível um corte de maior magnitude?
FG – Decisões de pace [intensidade] e de flexibilização ou não de política monetária, a gente vai tomar em cada reunião. Na reunião de agosto, vamos ver como todo o conjunto de informações evoluiu em relação ao que a gente esperava e ao que a gente quer ver. Palavras como “parcimônia” foram inseridas no comunicado e na ata de forma unânime e consensual pelo comitê e elas têm um papel ali.
P- A meta contínua de inflação ratifica um modelo que já é executado pelo BC?
FG – Tem havido confusão entre o que é a aferição da meta e o período de convergência da meta. A aferição a respeito de o BC ter ou não cumprido seu mandato terá a ver agora com a análise da inflação acumulada em 12 meses em cada mês, em vez de olhar só para o mês de dezembro de cada ano-calendário. Nos últimos dois anos, nós escrevemos cartas abertas em janeiro referentes ao descumprimento da meta de inflação. Muda um pouquinho, mas em termos de olhar para nosso horizonte de convergência, não deve se alterar muito.
P. – Qual é o principal ganho desse sistema?
FG – Fica mais fácil para as pessoas entenderem e acompanharem o que o BC está fazendo e impede que haja incentivos para se tomar decisões no final do ano apenas para garantir que a meta seja atingida.
P. – Na sua visão, é melhor que o prazo de convergência fique a cargo do BC?
FG – A gente tem vivido um cenário macroeconômico muito complexo, principalmente depois da pandemia. O país está passando por diversas mudanças, e choques diferentes têm impactos diferentes. É importante que o BC tenha flexibilidade para determinar o seu horizonte de convergência. Às vezes a convergência pode ser feita de forma mais rápida sem gerar custos [para economia], às vezes de forma mais lenta.
P. – A periodicidade da prestação de contas pode mudar. O que pode ser interessante?
FG – Alguns BCs, como o da Inglaterra, fazem cartas toda vez que a inflação ultrapassa o teto da meta em 12 meses. Se você imaginar um período de inflação inercial, você teria que escrever cartas todo mês. Ter periodicidade anual para ser uma prestação de contas para a sociedade do que que aconteceu ao longo dos últimos 12 meses parece uma boa ideia, mas essa é uma definição que cabe ao governo.
P. – Como está a preparação do Brasil para assumir a presidência no G20?
FG – Temos tido um excelente relacionamento com o Ministério da Fazenda, que coordena o track [trilho] financeiro junto com o BC e com o Ministério das Relações Exteriores. Estamos unidos em fazer um G20 que possa trazer entregas efetivas para sociedade e que possa refletir as prioridades do Brasil na parte de ativos digitais e de sustentabilidade. Há muita expectativa em relação à presidência brasileira.
P. – Pode adiantar algo?
FG – As discussões em relação ao que vai ser prioridade do Brasil ainda estão em andamento. A gente vai ter uma primeira reunião de deputies, de vice-ministros e diretores de BCs do G20, aqui em Brasília, em dezembro. Vamos definir a agenda de trabalho a partir dela.
P. – O governo Lula quer transformar o SML [Sistema de Pagamentos em Moeda Local] em um sistema multilateral. Há entraves?
FG – O SML é um bom sistema de pagamentos em moedas locais, mas tem mostrado um crescimento limitado ainda. Ele não atingiu seu potencial completo. É um possível caminho para aumentar o comércio intrarregional em moedas próprias. Mas isso me traz para as limitações que estamos enfrentando aqui. O BC precisa ter simetria com carreiras típicas de Estado. O BC tem demonstrado um enorme ganho de produtividade, entregando projetos importantes, como Pix. A gente tem aumentado muito nosso escopo de atividades, a despeito da nossa força de trabalho ter se reduzido expressivamente. O SML é uma das áreas que sofrem com falta de recursos humanos para a gente seguir nessa expansão.
P. – As limitações de expansão seriam mais relacionadas à falta de pessoal?
FG – O sistema tem uma interlocução com diversos bancos, precisamos ter pessoas alocadas para qualquer problema de compensação. A gente tem muita operação hoje com a Argentina. Se for expandir para outros países, precisamos ter mais gente acompanhando como o sistema está funcionando. Com o retorno das operações-padrão no BC e com a limitação de pessoal, os nossos riscos operacionais têm crescido em diversos segmentos de atuação.
P. – A discussão sobre a criação da moeda comum, como pode ser viabilizada?
FG – Moeda comum é um projeto amplo, que exige convergência macroeconômica entre os países, é algo mais difícil, hoje não muito próximo da realidade.
P. – Gostaria de acrescentar algo?
FG – Se a gente quisesse que a inflação estivesse já dentro da meta em 2023, teria que ter subido muito mais os juros. A gente fez essa convergência longa exatamente para moderar as perdas da economia e, ao mesmo tempo, garantir que a inflação viesse para a meta. Ficam claros os ganhos da autonomia e da atuação técnica do BC nesse momento em que a inflação está desacelerando, enquanto se colhem, também em parte por conta da atuação do Ministério da Fazenda, resultados positivos na economia.
RAIO-X
Fernanda Guardado, 43
É diretora de Assuntos Internacionais e de Gestão de Riscos Corporativos do Banco Central, com mandato até 31 de dezembro de 2023. Atuou durante mais de dez anos no mercado financeiro, exercendo cargos como economista-chefe no banco Bocom BBM (2019 a 2021) e na Vinci Partners (2010 a 2012). Tem graduação, mestrado e doutorado em Economia pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).
NATHALIA GARCIA / Folhapress