Djaimilia e Epalanga pensam se escritor negro tem missão política ou pode ser Proust

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Djaimilia Pereira de Almeida e Kalaf Epalanga pertencem à nova geração de escritores da língua portuguesa, ou “pretuguesa”, como diria Epalanga ao pegar emprestado o neologismo criado pela antropóloga brasileira Lélia Gonzalez.

Os dois possuem uma origem comum: Epalanga é angolano e Djaimilia, luso-angolana. Ela acaba de lançar “O que É Ser uma Escritora Negra Hoje, de Acordo Comigo”, um livro composto por dois ensaios e uma entrevista, e ele, “Minha Pátria É a Língua Pretuguesa”, uma reunião de crônicas.

Suas obras discutem, por meio de paradoxos e ambiguidades, questões raciais complexas e a condição de escritores em um meio dominado por brancos.

Antes de serem escritores, os dois são leitores em constante diálogo com a tradição literária. Djaimilia tem formação em filosofia, o que fica evidente em seus textos. Epalanga constrói argumentos atentos a uma perspectiva histórica e sociológica –ou seja, com a preocupação de trazer o contexto temporal de cada sociedade para as discussões que propõe.

Descontadas as semelhanças, cada um possui um universo particular e infinito dentro de si. Epalanga, autor de “Também os Brancos Sabem Dançar”, é fundador da banda Buraka Som Sistema e cofundador do selo musical português Enchufada, responsável por misturar o ritmo angolano kuduro com gêneros eletrônicos europeus.

Se ele teve uma trajetória pautada por um sentido de extroversão, a de Djaimilia foi mais introspectiva. “Tornei-me negra no meu quarto”, define ela em entrevista por vídeo. “Ser negra por introspecção é destino de órfã.”

Segundo a autora de “Luanda, Lisboa, Paraíso”, premiado com o Oceanos, sua negritude não é expressa apenas em sua pele, seu cabelo e sua identidade física, mas sobretudo em sua identidade interior. Sua sensibilidade, sua percepção literária do mundo, é o ponto de vista de uma pessoa que carrega isso no corpo.

Já para Epalanga, se alguém nega sua existência, quando chega fevereiro essa mesma pessoa é incapaz de existir sem o samba. “Isso é filosofia africana”, afirma.

Nas duas obras recém-lançadas, os autores ajudam a compreender a experiência afro-diaspórica brasileira em comparação com a angolana. Ambos são intelectuais cosmopolitas com antenas interessadas em captar as transformações do mundo.

As publicações trazem olhares plurais à nossa compreensão de questões raciais. Como o próprio Epalanga pontua, “o projeto colonial e, mais adiante, até mesmo a ditadura civil-militar, sempre cultuou um isolamento intencional e perverso do Brasil: dividir para dominar”. Segundo ele, os brasileiros jamais estiveram em diálogo real com as Américas ou com a África portuguesa.

Quer dizer, segundo o autor, dificultar uma conversa com os países africanos de língua portuguesa, separando experiências negras que poderiam se fortalecer com esse contato, fez parte do projeto de poder feito para privilegiar a branquitude. Para Epalanga, no entanto, “a ficção é o único lugar onde os negros conseguem ser verdadeiramente livres”.

Uma das questões principais de “O que É Ser uma Escritora Negra Hoje” é a reflexão sobre quais são os usos que o establishment intelectual faz da figura da escritora negra. “Qual é o papel que lhe é dado nessa indústria? Ela tem liberdade para se rebelar contra esse papel?”, questiona.

Se por um lado jamais vivemos em um período tão propício à existência de escritoras negras, até que ponto essa personagem é realmente admitida na conversa?

“A expectativa do establishment é a de que a escritora negra conte histórias com uma temática muito específica, para um público muito específico, ou ela pode desejar ser um Proust ou um Dostoiévski? Até que ponto lhe é dado esse espaço?”, interroga.

Djaimilia e Epalanga leem o momento atual com algum ceticismo. Para ela, ser uma escritora negra implica ter que lidar com dois grupos principais: de um lado pessoas que afirmam que questões de representatividade racial e de gênero são apenas um modismo editorial passageiro, do outro aqueles que a cobram um certo sentido de missão histórica ou que o seu projeto literário esteja subordinado a uma causa específica, à denúncia de uma determinada realidade social.

Para Epalanga, o capitalismo é muito inteligente e eficaz em se autopreservar: se vale da esquerda e da direita, por uma questão de equilíbrio de forças, para que seja mantido o status quo. “Ainda não há um modelo revolucionário, e possivelmente jamais teremos um, enquanto nos guiarmos por esses dois polos”, afirma.

Mesmo diante da tendência do capitalismo em mercantilizar as esferas da vida e transformar representatividade em commodity, Djaimilia Pereira de Almeida e Kalaf Epalanga interpretam a realidade cultural e política a partir de sensibilidades complexas e até então ignoradas, ou pelo menos marginalizadas, pelo cânone literário.

Epalanga recorda que, durante muitos séculos, os negros escutaram que tanto sua filosofia como sua produção intelectual não tinha valor algum. No entanto, estamos lentamente começando a caminhar rumo a uma direção que esboça, ainda que timidamente, algum tipo de reparação histórica.

“Estamos desmontando algo que foi criado e aprimorado ao longo de cinco séculos. Não vamos conseguir desmontar em 50, 60 anos. O progresso é feito de avanços e recuos”, reflete ele.

MINHA PÁTRIA É A LÍNGUA PRETUGUESA: CRÔNICAS

Preço: R$ 69,90 (192 págs.); R$ 44,90 (ebook)

Autoria: Kalaf Epalanga

Editora: Todavia

O QUE É SER UMA ESCRITORA NEGRA HOJE, DE ACORDO COMIGO

Preço:R$ 49,90 (96 págs.); R$ 29,90 (ebook)

Autoria: Djaimilia Pereira de Almeida

Editora: Todavia

GABRIEL TRIGUEIRO / Folhapress

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