RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Seis anos depois do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, o relatório final de investigação da Polícia Federal sobre o caso aponta o passo a passo do planejamento do crime, concretizado em março de 2018.
São 479 páginas com episódios narrados em ordem cronológica que jogam luz sobre a intricada rede de fatos que terminaram nas mortes de Marielle e Anderson.
O documento traz desde as origens da relação entre os personagens envolvidos e os primeiros planos de execução da vereadora até as tentativas de atrapalhar o andamento das diligências para impedir que os nomes dos mandantes fossem conhecidos.
Com base nesse relatório e autorização do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), a PF prendeu no último domingo (24) três suspeitos de serem os mandantes do crime: o deputado federal Chiquinho Brazão; o irmão dele Domingos Brazão, conselheiro do TCE (Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro); e o delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil no Rio. Todos eles negam envolvimento com o assassinato de Marielle e Anderson.
Veja, a seguir, a história do crime, segundo a Polícia Federal.
*
MOTIVAÇÃO
O inquérito da PF aponta que Marielle foi assassinada “por ser vista como um obstáculo aos interesses” dos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão, apontados como idealizadores do crime.
Em sua delação, Ronnie Lessa disse que Domingos Brazão passou a acreditar que a vereadora tinha a intenção de prejudicar supostas atividades criminosas dos irmãos Brazão, principalmente relacionadas a milícia e grilagem de terras. As informações teriam sido repassadas por Laerte Silva de Lima, infiltrado no PSOL.
A PF não descarta a possibilidade de o infiltrado ter inventado informações. Nas palavras de Lessa, Laerte teria “enfeitado o pavão”.
“Ronnie Lessa ouviu de Domingos Brazão que o infiltrado Laerte teria levantado que Marielle pediu para a população não aderir a novos loteamentos situados em áreas de milícia”, diz o relatório da PF.
PLANEJAMENTO
A investigação mostra que o crime começou a ser planejado em 2017 e que a preparação aumentou no segundo semestre do mesmo ano.
A PF destaca uma divergência entre Marielle e Chiquinho Brazão, em discussão na Câmara Municipal do Rio, sobre projeto de lei “idealizado para flexibilizar regras de regularização [de terras]”.
“Aqui impede destacar que esse cenário recrudesceu justamente no segundo semestre de 2017, atribuído pelo colaborador como sendo a origem do planejamento da execução ora investigada, ocasião na qual ressaltamos a descontrolada reação de Chiquinho Brazão à atuação de Marielle na apertada votação do PLC 174/2016”, diz a PF.
A polícia também afirma que as negociações para o crime foram feitas de maneira clandestina, “durante breves encontros em local deserto”.
PROPOSTA
De acordo com os investigadores, foi o ex-PM Edmilson Oliveira da Silva, conhecido como Macalé morto a tiros em novembro de 2021, quem passou ao também ex-PM Ronnie Lessa a missão de matar Marielle.
Houve promessa de recompensa idealizada pelos irmãos Brazão, aceita pelos suspeitos de serem executores do crime, para criação e comando “de um grupo paramilitar em uma grande extensão de terras vinculada à família Brazão, nas adjacências da estrada Comandante Luís Souto, no bairro da Praça Seca [zona oeste do Rio]”.
PLANO
Segundo a Polícia Federal, o plano de execução da vereadora foi meticulosamente planejado pelo então diretor da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio, delegado Rivaldo Barbosa, segundo os investigadores.
Rivaldo teria aderido ao crime antes mesmo de Ronnie Lessa e Macalé, diz a PF, passando a ser um dos arquitetos do assassinato com os irmãos Brazão.
O relatório aponta que o delegado chegou a fazer uma “exigência fundamental” que seria repassada aos executores, de que a morte não poderia ocorrer após a saída da vereadora da Câmara Municipal, a fim de afastar a ideia de crime político. O objetivo de Rivaldo com a exigência era manter as investigações sob sua alçada.
Na delação, Ronnie Lessa disse que sua primeira reunião com os irmãos Brazão ocorreu por volta de setembro de 2017, quando foi acertado o assassinato de Marielle.
O primeiro encontro foi no Hotel Transamérica, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. Chiquinho e Domingos Brazão estavam em um carro sozinhos. Segundo Lessa, Domingos descreveu todo o serviço e avisou que tinha colocado o infiltrado no PSOL para levantar informações e monitorar a vereadora.
O CRIME
Teria sido de um telefone do infiltrado Laerte, segundo Lessa, que o paradeiro da vereadora no dia em que morreu foi repassado aos assassinos.
“De acordo com Ronnie Lessa, naquela oportunidade, por volta do meio-dia, ele recebeu uma ligação de Macalé, por meio da qual ele revelou que recebera uma ligação oriunda do terminal [telefônico] vinculado a Laerte. Todavia, ao atender o telefone, Macalé se surpreendeu ao constatar que o interlocutor, na verdade, era Ronald Paulo Alves Pereira, vulgo Major Ronald. Em que pese isso, Macalé indicou a Lessa que Ronald lhe passara a informação de que na noite daquele dia haveria o evento na Casa das Pretas e que Marielle Franco estaria presente.”
Com a informação, o ex-PM Élcio de Queiroz foi até a casa de Lessa, no condomínio Vivendas da Barra, na Barra da Tijuca (zona oeste), para dar início ao plano de execução. Élcio confessou em delação que dirigiu o carro usado no crime.
Os dois entraram no Cobalt e foram até a Casa das Pretas, na Lapa, na região central do Rio. A dupla esperou o fim de evento e, na saída, seguiu o carro de Marielle e Anderson por cerca de 4 km. Os disparos foram efetuados entre as ruas Joaquim Palhares e João Paulo I, entre Cidade Nova e Estácio.
Marielle foi assassinada com quatro tiros na cabeça. O motorista Anderson Gomes foi morto com três tiros nas costas. A assessora Fernanda Chaves, terceira ocupante do veículo, não foi atingida e sofreu escoriações leves.
PÓS-CRIME
Logo após o ataque, Lessa e Élcio foram até a casa da mãe de Lessa e abandonaram o Cobalt. Foi nesse momento que Dennis Lessa, irmão de Ronnie, pediu um táxi, que os levou para um bar.
Já no estabelecimento, Lessa e Élcio encontraram o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, o Suel, para se livrar do veículo usado no atentado. Suel está preso desde julho do ano passado por envolvimento no crime.
Ainda segundo a PF, Suel intermediou contato com Edilson Barbosa dos Santos, o Orelha, responsável por ferros-velhos e desmanches que assumiria o trabalho de desmanche do carro. De acordo com a delação de Élcio de Queiroz, Suel teria providenciado a troca de placas do veículo Cobalt, se desfeito das cápsulas e munições usadas e providenciado o desmanche do carro com Orelha.
No mês seguinte ao atentado, diz o relatório da PF, Lessa se encontrou com os irmãos Brazão novamente. Na ocasião, Domingos teria alertado a Lessa e Macalé que a arma usada no crime devia ser “recolocada no lugar”, sem especificar qual.
Três dias após essa reunião, Macalé e Lessa foram a Rio das Pedras, e Macalé entregou a bolsa com a arma ao policial militar Robson Calixto Fonseca, conhecido como Peixão, assessor de Domingos Brazão no TCE-RJ. Peixão então teria feito o descarte das munições num córrego da comunidade. O assessor também foi o responsável, ainda segundo a delação de Lessa, por buscar a submetralhadora usada no crime.
OBSTRUÇÃO DE INVESTIGAÇÃO
No encontro entre Lessa e os irmãos Brazão após o atentado, Domingos teria garantido que o delegado Rivaldo Barbosa já estava agindo para dificultar a investigação, segundo o relatório da Polícia Federal.
Para a PF, a investigação dos homicídios de Marielle e Anderson foi, antes mesmo da prática do delito, talhada para ser natimorta justamente pelo ajuste prévio dos autores com o então responsável pela apuração de homicídios no Rio.
“Coincidência ou não, o crime fora executado um dia após a posse de Rivaldo Barbosa na função de Chefe de Polícia”, afirma trecho do relatório.
O delegado foi empossado no cargo no dia 13 de março de 2018. Sua escolha foi anunciada pelo então secretário de Segurança Pública do Rio, general Richard Fernandez Nunes.
Assim que assumiu a Polícia Civil, Rivaldo Barbosa nomeou Giniton Lages como chefe da Delegacia de Homicídios da Capital a fim de impedir que a investigação chegasse aos mandantes, afirma a PF.
Ainda na tentativa de que a investigação não fosse federalizada, a Polícia Civil divulgou para a imprensa que as munições empregadas no assassinato faziam parte de um lote (UZZ-18) vendido para a Polícia Federal em 2006.
O relatório da PF aponta que “o coro foi entoado pelo então Procurador-Geral de Justiça do Rio, José Eduardo Gussem”, em 2018, no fim do mês do atentado, e que o procurador impediu que fosse à frente um pedido da Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, para que fosse instaurada uma apuração preliminar do caso no Ministério Público Federal.
ALÉXIA SOUSA / Folhapress