Do ‘Tigrinho gospel’ à rixa Marçal-Nunes: como foi a disputa pelo voto evangélico em SP

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nem só de soco e cadeirada vive um pleito para prefeito de São Paulo. Puxado por Pablo Marçal (PRTB) e Ricardo Nunes (MDB), os dois candidatos competitivos da direita, o discurso cristão ensopou a cena eleitoral em 2024.

Marçal se vendeu como Davi, o indômito guerreiro que venceria o Golias da esquerda. Nunes posou de Josafá, que na Bíblia aparece orando enquanto seus adversários destroem uns aos outros.

Guilherme Boulos (PSOL), bem menos dado a acenos religiosos, ganhou de última hora um defensor improvável: Silas Malafaia.

O ranço do pastor carioca com políticos progressistas só não foi maior do que sua briga com Marçal. A dois dias da eleição, Malafaia saiu em defesa do psolista, alvo de um laudo falso divulgado pelo influenciador. O documento o associava ao consumo de cocaína.

O pastor chamou Marçal de “psicopata” e citou Martinho Lutero, prócer da Reforma Protestante, após marçalistas inundarem suas redes para pintá-lo de vira-casaca: “Que o mundo, e não Deus, fique ofendido comigo”.

Ofendido ficou o pastor Ed René Kivitz, farol para a minoria de evangélicos progressistas, com o avanço do influenciador nas igrejas. “Tô impressionado com a teologia coaching”, pregou em sua Igreja Batista da Água Branca.

“Esse jogo religioso é muito semelhante à aposta. ‘Se o pastor liberar a palavra pra mim, me garantir que vou chegar lá, aí eu tô dentro’.” Vêm aí, lamentou Kivitz, a “Church Bet” e o “tigrinho gospel”.

A esquerda correu por fora nessa corrida pelo voto evangélico. O cabo de guerra se concentrou em Marçal, um evangélico que até pouco tempo preferia não se definir assim, e sim como alguém que leva o cristianismo como “lifestyle”, e Nunes, católico praticante.

O primeiro não tem o apreço de pastores com quilate na cena evangélica. O segundo foi apoiado por praticamente todos eles. A dupla terminou a primeira etapa eleitoral empatada em pesquisas que mediram a preferência desse eleitorado.

É verdade que alguns nomes influentes no segmento se achegaram ao ex-coach na reta final. O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) foi um deles: antes “dar uma chance para a dúvida” (Marçal) do que “engolir esse cara” (Nunes), afirmou.

Marco Feliciano (PL-SP), seu colega no Congresso, também dispensou Nunes, o candidato oficial do bolsonarismo. “Nós vamos eleger um prefeito ou consagrarmos um pastor de igreja aqui em São Paulo? Pergunto isso porque a forma de crer em Deus de um candidato está sendo questionada: a fé de Pablo Marçal”, disse. Não há por que, segundo ele, bombardear um conservador em vez de unir forças contra a “extrema esquerda”, como rotula Boulos.

Nunes foi habilidoso em construir em torno de si um cinturão de pastores. Ladearam com ele o apóstolo Valdemiro Santiago e o pastor José Wellington Bezerra da Costa, dois peixões nos mares evangélicos.

Aliou-se a ele ainda o casal Estevam e Sonia Hernandes, apóstolo e bispa da Igreja Renascer em Cristo, também por trás da Marcha para Jesus. O prefeito começou a campanha em agosto numa missa, na Catedral de Santo Amaro, e a fechou com um culto da Renascer no sábado (5).

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), patrocinador-mor de sua candidatura, foi com ele e subiu no púlpito para falar de tempos empesteados por “tribulação” e “filhos das trevas”. Também comparou o emedebista a Josafá. O personagem do Antigo Testamento, ameaçado por dois povos, orou em vez de partir para cima. No fim, Deus fez com que moabitas e amonitas destruíssem uns aos outros.

Finda a pregação, com Nunes ao lado, disse Tarcísio: “Aqui está o nosso Josafá. O que Josafá fez? Confiou no Senhor e seguiu em frente”. As campanhas de Marçal e Boulos seriam os inimigos que terminaram por se aniquilar, enquanto a Nunes bastaria entregar seu destino a Deus.

Pouco antes, um jovem ergueu o celular na frente do púlpito e fez o M. Governador e prefeito fingiram que não era com eles, e Estevam o repreendeu: “Você pensa que está onde, rapaz?”

Marçal fez o que pode para furar a aliança pastoral em torno do adversário. Deu entrevista à TV do missionário R.R. Soares e visitou José Wellington, por anos presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus.

O nonagenário pastor chegou a fazer o M com as mãos, gesto explorado pelo influenciador em suas redes, mas os filhos do ancião negaram qualquer apoio —a família estava fechada com Nunes, e o pai só recebeu o candidato do PRTB por cortesia, afirmaram.

Marçal também foi à Congregação Cristã no Brasil, igreja que tem como fiel o advogado Tassio Renam, coordenador-geral da campanha e CEO da Marçal Corp.

Ainda: sugeriu que Nunes só conhecia versículos que seu marqueteiro mandou decorar e salpicou sua participação nos debates com pitadas bíblicas. Não se preocupava em explicá-las.

Alguns exemplos: acusou Marina Helena (Novo) de vendê-lo por 30 moedas de prata sem explanar que Judas fez o mesmo com Jesus. Também prometeu um “dia de vingança” para São Paulo, expressão presente no Livro de Isaías. Acenos subliminares que o eleitor cristão pescaria. Quem pegou, pegou.

O ex-coach disse mais de uma vez que se vê como um Davi no imaginário político do país. Já Saul, o primeiro rei de Israel, seria Jair Bolsonaro (PL).

O homem que derrotou o gigante Golias sucedeu o velho monarca, que já não estaria em sua melhor forma. O influenciador enxerga semelhanças da narrativa bíblica com sua história e a do ex-presidente. “Davi tem que ter paciência e honrar Saul até o último dia do governo dele”, disse à Folha de S.Paulo em setembro.

Saul foi o primeiro escolhido de Deus para governar Israel, mas O desobedeceu. Seu fim: lançou-se contra uma espada após ver os filhos morrerem. Marçal aponta isso. “Ele próprio acaba com a própria vida. Na história com o Bolsonaro e com o que o Brasil vai viver está a relação de Saul e Davi.”

No fim, as urnas ungiram Nunes como o candidato da direita no segundo turno contra Boulos.

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress

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