SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As competidoras fazem movimentos lineares e angulosos com os braços, de modo a evocar formas geométricas. Emolduram o próprio rosto usando as mãos, como se fossem modelos em um editorial. Ao redor, a plateia aplaude e grita a cada novo passo, criando uma atmosfera carregada de euforia.
A cena faz parte do documentário “Salão de Baile” e captura a essência de uma ball, evento onde membros da comunidade LGBTQIA+ exorcizam traumas e celebram suas existências em um misto de festa e competição. Os bailes, porém, são mais do que isso, um dos pilares da cultura ballroom, movimento que surgiu na década de 1970, nos Estados Unidos, como resposta ao racismo e à transfobia.
Laureado com o prêmio máximo do Festival Mix Brasil, o filme usa como pano de fundo um baile realizado no Rio de Janeiro, em 2022, para contar a história de alguns de seus participantes. Vemos pessoas como Dominick Dark Cosmos, uma das estrelas da cena ballroom fluminense. “Sou travesti desde os 12 anos, então já passei por muita coisa e nunca fui vista. Sempre me enxergaram como uma bichinha preta”, diz ela. “Hoje, posso falar que sou vista e reconhecida.”
Diretores do projeto, Juru e Vitã afirmam que mostrar a história de pessoas como Dominick é uma forma de aproximar o público dessa cultura. “A pessoa não entenderia nem conseguiria se conectar apenas vendo o baile”, diz Vitã, acrescentando que o objetivo era emocionar os espectadores.
“A gente queria despertar a mesma emoção de um jogo de futebol e fazer as pessoas torcerem por quem está ali batalhando”, diz o cineasta, citando os duelos que os participantes travam em diferentes categorias, cada uma com regras e estilos próprios de performance.
A categoria “new way”, por exemplo, valoriza a flexibilidade dos competidores, enquanto a “runway” premia quem desfila com mais desenvoltura. A decisão final cabe a um corpo de jurados formado por membros proeminentes da cena.
À medida que ganham competições e notoriedade, os artistas podem receber alguns títulos. O primeiro é o de “star”, voltado a quem tem menos tempo na comunidade, mas já está se destacando. Há também o título de “legendary”, reservado aos que atuam há mais tempo e são vistos como referência.
A honraria mais importante é a de “icon”, ou seja, lideranças que ajudaram a construir o movimento. São pessoas com títulos mais elevados que avaliam as performances nas balls, eventos em que o público também desempenha papel fundamental.
No documentário, vemos as pessoas vibrarem com os competidores e estalarem os dedos em direção ao chão.Isso acontece quando os artistas executam o “dip”, passo em que se jogam de forma repentina para trás, aterrissando no chão com uma das pernas para cima.
Vitã explica que um dos desafios foi transmitir essa energia no documentário. “Tinha esse jogo entre a técnica e a emoção, porque uma ball não pode parar. Só que a gente precisou dar pausas para trocar a luz, mudar o ângulo da câmera e ajustar o som.” Por isso, eles pediam ao público para não deixar a euforia arrefecer. “Foi um pacto coletivo para traduzir um baile em som e imagem.”
No documentário, essa tradução não é romântica nem idealizada. Os bailes de fato são espaços de acolhimento para pessoas marginalizadas, mas podem se transformar também em palco de conflitos e rivalidades. Afinal, a disputa pelo troféu em cada categoria é aguerrida.
“Era muito importante a gente trazer um retrato complexo dos bailes”, diz Juru, que também assina a direção do documentário. “Formar uma comunidade não é fácil e não vem sem atrito. ‘Ballroom’ é sobre acolhimento, mas tem competição. Queríamos fazer um retrato justo e mostrar que não é uma coisa só.”
A questão racial é outro aspecto intrínseco a essa cultura, que surgiu para enfrentar o racismo que artistas negras e latinas sofriam nos concursos de drag queen americanos nos anos 1960, elas perdiam com frequência para competidoras brancas em razão da falta de diversidade no corpo de jurados.
Foi então que Crystal LaBeija, mulher trans negra, decidiu romper com os concursos tradicionais. Ao lado de Lottie, outra drag queen, criou em 1972 uma competição para artistas não brancos intitulada “O Primeiro Baile Anual da Casa LaBeija”.
LaBeija e Lottie criaram não apenas um evento, mas, inspirando-se nas maisons de alta-costura, como Chanel e Givenchy, fundaram a própria casa. O intuito era oferecer uma família postiça a quem havia sido expulso de seus lares em razão do preconceito. Outras figuras seguiram os passos de LaBeija e criaram casas lendárias, como a Ninja, Revlon e Xtravaganza.
No entanto, quando o movimento chegou ao Brasil, em 2015, os primeiros grupos foram formados por pessoas brancas. Hoje, esse cenário mudou com os esforços de artistas negros para aumentar a diversidade. No documentário, isso fica evidente na entrevista de Lion King Lafond, competidor da categoria “new way”, tradicionalmente ocupada por artistas brancos no Brasil.
“Quando entrei na cena, não tinha pessoas que se pareciam comigo”, diz ele. “Se estou presente agora é justamente para dar referências a pessoas pretas.”
SALÃO DE BAILE: THIS IS BALLROOM
– Quando 5 de dezembro nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Produção Brasil, 2022
– Direção Juru e Vitã
MATHEUS ROCHA / Folhapress