FOLHAPRESS – O corpo impera, com pele nua, sangue escorrendo, carne à mostra. As artistas retratadas no documentário “Mulheres Radicais”, segundo a historiadora Claudia Calirman, têm trabalhos cheios de tensão, permeados por corpos martirizados, distorcidos e fragmentados.
Dirigido por Isabel De Luca e Isabel Nascimento Silva, o filme visita as mulheres latino-americanas resgatadas por uma mostra de mesmo nome que passou pelo Brooklyn Museum de Nova York (EUA) e pela Pinacoteca, ambos em 2018.
Entre as 120 mulheres da exposição histórica, que reuniu trabalhos de 1960 a 1985, foram entrevistadas Lenora de Barros, Anna Bella Geiger, Teresinha Soares, Sylvia Palacios Whitman, Graciela Carnevale, Cecilia Vicuña, Liliana Porter, Isabel Castro, Claudia Andujar, Victoria Cabezas e María Evelia Marmolejo.
Muito as une, mas muito difere-as. Algumas obras são dolorosas e sangrentas, outras divertidas e coloridas. Algumas muito sensuais. Todas muito políticas.
Soares, moradora de Belo Horizonte, traz bom humor ao longa, que tende a ser pesado em muitos momentos devido aos relatos de tortura e luto. Dona de uma obra escandalosa, colorida e recheada de erotismo, com pênis para todos os lados, ela diz que era temida. “Apesar de eu pertencer à sociedade, eu fazia uma crítica à sociedade que eu pertencia.”
Também coloridíssima é a obra da costarriquenha Cabezas. Ela, ao estudar em Miami, foi confrontada com a ideia de que seu país era uma república de bananas, termo pejorativo que retrata o Caribe como vítima de juntas militares que só sabem viver de exportação de frutas.
“O único jeito de lidar com isso era com ironia”, diz a artista. Em sua obra ela usou a imagem da própria banana, com fortíssima conotação sexual, como aponta Claudia Andujar, para criticar a ignorância dos Estados Unidos e as políticas coloniais.
O filme, vale apontar, propõe que as artistas entrevistem umas às outras, sendo que muitas nem se conheciam até a gravação do documentário. A dinâmica é interessante, e os diálogos acabam permeados por falas de curadoras e historiadoras que oferecem mais contexto crítico sobre a obra de cada uma delas.
O recorte temporal dos anos 1960 à metade dos 1980 esbarra nos períodos ditatoriais dos países de origem das artistas e a violência de estado perpassa a violência de gênero o tempo todo.
“Eu vi muito sangue”, diz Marmolejo, em entrevista. “Precisava usar esse elemento. Muita coisa aconteceu no meu país, desaparecimentos.” A colombiana é conhecida por suas performances viscerais e altamente politizadas, como “Anonimo 1”, em que ela desfila por uma trilha de papéis brancos com os próprios pés cortados e ensanguentados. “Meu corpo vai protestar, meu corpo vai falar.”
Esse é um mote comum às obras das artistas e, consequentemente, um fio condutor do documentário. Se as exposições serviram para, enfim, jogar luz sobre a obra esquecida e injustamente pouco valorizada de artistas tão importantes, o filme faz um papel complementar de trazer os bastidores e transformar essas mulheres em gente.
Gente que casa, gente que tem filhos, gente que desiste. E não faltam histórias de mulheres que interromperam suas carreiras em ascensão para cuidar da casa, casar, cuidar dos filhos.
Sylvia Palacios Whitman, por exemplo, interrompeu suas performances por três décadas. Ela nunca havia revelado o motivo até sua conversa com Lenora de Barros. Casada com o também artista Bob Whitman, Palacios e o marido corriam o mundo fazendo apresentações. Ela com seus números surrealistas, com caudas acopladas ao corpo e mãos verdes gigantescas que lembram patinhas de sapos. Até que o filho deles se matou.
Com outra filha para criar, Palacios entendeu que precisava ficar em casa. O marido continuou a viajar e fazer suas apresentações. Já ela é uma entre tantas que parou a carreira para cuidar da vida pessoal.
Cabezas, por outro lado, incorporou o pedido de divórcio do marido, feito por email, em uma de suas obras, em que ela coloca a certidão de casamento ao lado da mensagem.
Eis o grande mérito do documentário “Mulheres Radicais”: trazer em detalhe quem, no fim, faz os sacrifícios. Afinal, se o corpo é tão político, é inevitável que a vida dessas mulheres e o que as afastou do estrelato também seja. E “Mulheres Radicais” não falha em escancarar que o pessoal é mais político do que nunca.
MULHERES RADICAIS
Avaliação Muito bom
Quando Mostra de SP: Sex. (20), às 21h45, no Espaço Itaú Frei Caneca; e seg. (23), às 15h45, no Kinoplex Itaim
Classificação 10 anos
Produção Brasil, 2023
Direção Isabel Nascimento Silva
BÁRBARA BLUM / Folhapress