FOLHAPRESS – Engana-se quem espera que “Orlando: Minha Biografia Política”, de Paul B. Preciado, atenha-se aos pactos do gênero biográfico e narre de forma linear e bem-comportada o início, meio e fim de uma vida. Assim como engana-se quem lê a primeira frase de “Orlando: Uma Biografia”, de Virginia Woolf, ”Ele, pois não havia dúvida quanto ao seu sexo” e espera que não haja de fato dúvida.
O documentário do filósofo espanhol, que estreou em São Paulo no dia 4, é, antes de tudo, uma carta à romancista inglesa, pioneira do pensamento feminista e da literatura experimental. “Escrever minha biografia, Virginia, é também descer com Orlando à escuridão”, diz Preciado, o missivista, que não escreve nem filma sua biografia. Mas a de muitos.
No filme, entre leituras de trechos de “Orlando” romance de 1928 cujo/a protagonista atravessa séculos, mapas, sexos e gêneros homens trans, travestis, pessoas não binárias, mulheres trans e drag queens narram suas histórias e corpos com sinceridade e poesia enquanto encarnam Orlando e as personagens principais do romance.
Esta sinceridade dos relatos e sua variedade, por vezes até didatizados pelas análises que Preciado faz da vida e obra de Virginia, é o grande trunfo do filme, que passa a ter ares de “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho, em que ficção e realidade intercalam-se de maneira fluida e teatral.
Uma dramaturgia delicada e inteligente se constrói enquanto estes diversos Orlandos do século 21 tomam a palavra para si, pois escrever esta biografia política “é entender que somos os herdeiros de uma história apagada. É aprender a honrar os mortos, os sem-rosto que nos precederam”, diz a carta-filme.
Ao contrário da protagonista de Virginia, os personagens do filme de Preciado não são aristocratas da Inglaterra colonial. Não conhecem rainhas da Inglaterra, nem são embaixadores em Constantinopla. Estes Orlandos estão na salas de espera dos psiquiatras, são os “esqueletos perdidos nos arquivos”. São os “Orlandos da história que sucumbiram à violência institucional, familiar, econômica e social.
“Quem contará nossa história?”, a história dos Orlandos, pergunta Preciado após narrar o suicídio de Virginia. Seu próprio filme o faz, como quem cumpre uma profecia, mostrando que “é necessário sobreviver à violência para poder contar nossa história. É necessário contar nossa história para poder sobreviver à violência.”
ORLANDO: MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA
– Avaliação Ótimo
– Onde Nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Produção França, 2024
– Direção Paul B. Preciado
NANÁ DELUCA / Folhapress