RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Até a puberdade, Sergio Leone tinha uma visão tão apaixonada por Hollywood que chegava a acreditar que os americanos eram um povo especial, moderno, bem diferente das pessoas que via na Itália fascista dos anos 1930. Mas ele se desiludiu na Segunda Guerra, quando soldados amerianos chegaram a seu país. Percebeu neles um machismo e uma malandragem que nada devia às do povo italiano.
Teria nascido ali a vontade do futuro diretor de “Era uma Vez no Oeste” de redefinir o cânone do cinema americano, sobretudo o faroeste, com uma obra marcada por uma iconoclastia muito peculiar, ao mesmo tempo subversiva e reverente aos bangue-bangues de John Ford ou Howard Hawks.
Eis uma das teses do documentário “Sergio Leone, o Italiano que Inventou a América”, que trata da vida e da obra de um dos mais importantes cineastas da história da Itália e que é um dos destaques da Festa do Cinema Italiano deste ano.
“Quem quiser fazer um faroeste hoje, com algo de interessante, moderno, precisa começar aprendendo lições com Leone. Fazer algo diferente, mudar o ponto de vista sobre o gênero”, diz o italiano Francesco Zippel, diretor do documentário, que está no Brasil e participa de debate sobre o filme no domingo, dia 25, no Rio de Janeiro, no Espaço Itaú de Cinema.
O longa-metragem traz depoimentos de alguns diretores que souberam seguir as lições leonianas, capazes de incluir elementos de seus faroestes grandiloquentes mesmo em filmes de outros gêneros, como Martin Scorsese, Steven Spielberg e Quentin Tarantino.
Leone parecia destinado ao cinema desde cedo. Seu pai era cineasta, e sua mãe, atriz. Foi por anos assistente de direção, até assinar seu primeiro longa em 1961, a aventura “O Colosso de Rodes”, que dirigiu para arrecadar fundos para projetos mais pessoais.
Ficaria famoso pelas obras passadas no Velho Oeste dos Estados Unidos, mas filmadas com baixo orçamento em locações europeias –os “faroestes espaguete”, cujo grande destaque foi a trilogia do “Homem sem Nome”, lançada nos anos 1960. Ele seguiu com filmes cada vez mais elaborados, como seu testamento, “Era uma Vez na América”, de 1984.
Apesar dos filmes violentos, Leone era um homem doce. “Era uma pessoa muito boa, só que muito concentrada quando estava trabalhando”, diz Zippel, explicando a razão da feição carrancuda em fotos tiradas em sets.
Para traçar um painel desse diretor perfeccionista e amoroso, o cineasta diz que conseguiu reunir em seu filme quase todos os depoentes que desejava. Na maior parte, é preciso dizer, conta com vozes masculinas, a quem o cinema de Leone talvez falasse com mais força.
A única pessoa que não conseguiu foi justamente uma mulher: Kathryn Bigelow, primeira diretora a ganhar um Oscar, em 2010, por “Guerra ao Terror”. Questões de agenda a impediram. “Ela teria algo interessante a dizer. Seus filmes também trazem personagens masculinos muito fortes, e é uma diretora muito talentosa em termos técnicos, como Leone.”
Mas Zippel conseguiu um entrevistado crucial –Ennio Morricone, que gravou entrevista um ano antes de morrer, em 2020. O músico e o diretor formaram uma das parcerias artísticas mais celebradas do cinema.
Basta mencionar “Três Homens em Conflito”, de 1966, cuja trilha com sons dissonantes, animalescos e instrumentos inusitados ajudou a tornar o filme um marco.
O longa de Zippel, aliás, surge um após ano um documentário sobre o músico, “Ennio, o Maestro”, de Giuseppe Tornatore. Como Morricone e Leone tiveram trajetórias intimamente ligadas, havia o risco de os dois filmes repetirem entrevistados e falas –o que até ocorre, mas só parcialmente.
“Estava cético sobre assistir ao filme sobre Ennio. O projeto também demorou uma eternidade para Tornatore, mas por fim o filme dele saiu antes do meu”, diz o cineasta. “Cada um tem um jeito de trabalhar. Tornatore é um mestre, e quando comecei a ver o filme dele percebi que era muito diferente do documentário que eu estava fazendo.”
De fato, “Ennio” trazia depoimentos de seu biografado ainda vivo, enquanto “Leone” só pôde contar com seu falas de protagonista em material de arquivo –o cineasta morreu em 1989, aos 60, pouco antes de iniciar seu último projeto. O filme se passaria na União Soviética invadida por nazistas, nos anos 1940.
A partir do que conheceu sobre o projeto, Zippel palpita sobre o filme que nunca foi feito. “Teria sido grandioso, mas com momentos muito íntimos”, diz. “Leone sempre surpreendia o público.”
BRUNO GHETTI / Folhapress