BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A troca de governo com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva representou também uma mudança de postura do Ministério de Minas e Energia em relação a empresas que não cumpriram contratos de um polêmico leilão de térmicas, o PCS (Procedimento Competitivo Simplificado), mostram documentos obtidos pela reportagem.
Durante o governo Jair Bolsonaro, o ministério gerido por Adolfo Sachsida defendeu o cumprimento dos contratos e mirou uma suspensão amigável para encerrar o PCS: quem entrou no prazo receberia pelo que gerou e ficaria livre do custo do gás; Quem descumpriu o prazo ficaria isento das multas e, em troca, não entraria na Justiça
Alexandre Silveira, atual ministro da área, seguiu caminho oposto. Reuniu argumentos para manter as usinas em operação e pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) que assumisse uma mediação com as empresas. A Comissão de Solução Consensual, organismo de conciliação do TCU, trabalha no PCS desde abril.
Entre as empresas que atrasaram e buscam acordo estão a turca KPS e a Âmbar, braço de energia da J&F, que também controla a JBS, maior empresa de carne do mundo.
A diferença de postura é bilionária para a conta de luz. Na primeira opção, o custo cairia de R$ 39 bilhões valor total que as usinas poderiam receber para R$ 2,5 bilhões, caso contratos fossem cancelados. Agora, ninguém sabe o valor final do pagamento negociado com quem não entrou no prazo, nem o destino das multas e das penalidades que elas devem e somam quase R$ 13 bilhões.
O primeiro acordo celebrado no TCU foi uma solução temporária para a KPS no segundo semestre. A empresa vai operar apenas com uma usina e deixar as outras três de sobreaviso, o que reduz o gasto com gás. Com o desconto de R$ 580 milhões conseguido na conciliação no TCU, o custo para o consumidor no ano, que ficaria em quase R$ 3 bilhões, caiu para casa de R$ 2,4 bilhões.
O ex-diretor da Aneel, Edvaldo Santana, que defende a suspensão do PCS, considera “um absurdo” que órgãos regulatórios obriguem o consumidor a pagar térmicas caras quando sobra energia limpa barata, e não isenta a responsabilidade das empresas.
“Os geradores que estavam com as obras atrasadas também sabiam que não iria dar tempo, mas seguiram em frente, pensando que dariam um jeitinho em tudo isso.”
O leilão do PCS ocorreu durante a crise hídrica, em outubro de 2021, e contratou 17 usinas, a maioria a gás, para evitarem risco de apagões de 1º de maio de 2022 até 31 de dezembro de 2025. O seu custo foi qualificado como exorbitante no setor. Os consumidores devem pagar R$ 1.700 pelo MWh (megawatt-hora) aos vencedores, sete vezes mais que o valor médio pago hoje sem essas usinas, segundo cálculo da Frente Nacional de Consumidores.
Findo o prazo, só seis entraram em operação. O contrato prevê cancelamento dos atrasados.
Para complicar, os cenários climático e energético mudaram drasticamente. A chuva encheu os reservatórios das hidrelétricas. A energia é farta e barata. A guerra entre Rússia e Ucrânia elevou o preço do gás e complicou a vida de quem entregou a usina no prazo, pois os custos ficaram acima do previsto no plano de negócio. Já não queriam as usinas ligadas o tempo todo.
Diante das divergências criadas nessa conjuntura, o TCU avaliou a questão. O Acórdão 2.699/2022, determinou que o ministério avaliasse cada contrato e fizesse o que fosse melhor. Foi aberta uma consulta pública para ouvir os envolvidos.
A gestão Silveira, no entanto, devolveu a questão para o TCU, e, para especialistas que avaliaram os documentos, a manifestação da pasta favorece as empresas. Em uma nota técnica de 19 páginas, o ministério contou que apenas uma empresa queria negociação amigável, a Fênix, e defendeu uma conciliação com todas as empresas para mantê-las operando, ainda que parcialmente.
Para justificar a nova orientação, citou risco de elas irem à Justiça e o interesse público pelos projetos, pois havia risco de falta de potência no cenário no jargão do setor, energia é fluxo da corrente elétrica, e potência, a capacidade instalada para gerar energia.
A sustentação dos argumentos estavam em parecer da procuradoria da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e projeções do ONS e da EPE (Empresa de Pesquisa Energética).
O parecer está em sigilo, mas a reportagem teve acesso ao conteúdo. Provocada pelo ministério para comentar o risco judicial do PCS, a procuradoria afirmou que as empresas podem entrar na Justiça para operarem, e que a conciliação é sempre o melhor caminho, mas que era preciso resguardar o interesse público e as vantagens para o consumidor.
Destacou que, sendo assim, uma solução consensual deveria partir do pressuposto de que a energia ou a potência dos projetos são importantes para garantir a segurança do sistema interligado nacional
No mesmo dia, ONS e EPE emitiram nota, a pedido da pasta, afirmando não haver falta de energia no horizonte, mas sem descartar uma falta de potência. O risco seria de cerca de 6% para outubro de 2025, janeiro e outubro de 2026.
Chamou a atenção de especialistas que, no último item dessa nota, as duas entidades avisavam que não haviam incluído no cenário várias fontes que poderiam cobrir essa falta.
Técnicos da área avaliam que o ministério fez um “gol de mão” com o argumento, já que não faria sentido deixar térmicas ligadas por quase três anos para prevenir um risco de falta de potência em um mês do período contratual.
“Estão buscando argumentos para manter uma ilegalidade, porque preservar esses contratos é ilegal, e assumindo custos para o consumidor de energia”, afirma Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia e ex-diretor-geral da ONS (Operador Nacional do Sistema).
Procurada pela reportagem para comentar a nota, o ONS afirmou que “todos os estudos realizados têm caráter probabilístico”. Aquele cenário de março mudou. Não há mais falta de potência.
“As últimas avaliações conduzidas pelo ONS, consolidadas no Plano da Operação Energética 2023, indicam condições mais favoráveis para atendimento a energia e potência do que aquelas apresentadas no documento citado. Não foi identificada a necessidade de adoção de medidas adicionais àquelas já em curso, destaca o texto.”
O ex-diretor-geral da Aneel Jerson Kelman, um dos mais respeitados especialistas em água e energia do país, avalia que faltam argumentos em favor das usinas atrasadas.
“Você só não cancelaria os contratos do PCS se fosse vantagem para a administração pública, mas está claro que não é”, afirma ele.
As divergências em torno do PCS começaram na Aneel, quando a diretoria ficou dividida sobre o destino dos projetos atrasados. A KPS é um exemplo.
A diretoria da Aneel suspendeu, em agosto do ano passado, a autorização das usinas, por estarem atrasadas. A empresa tinha direito e recorreu na agência. Esse recurso foi encaminhado ao diretor Ricardo Tili que não tratou mais do tema.
A KPS também foi para Justiça, e conseguiu, no final de setembro, uma liminar para operar e não pagar multas até que a Aneel julgasse seu caso. .
No limbo regulatório criado pela protelação de Tili, a KPS recebeu cerca de R$ 1,8 bilhão de outubro de 2022 a junho deste ano,
A empresa tem agora se aproximado do governo. Na quinta-feira (3), o senador Davi Alcolumbre (União-AP), o embaixador da Turquia no Brasil e executivos da KPS, incluindo o CEO, Orhan Karadeniz, foram recebidos pelo ministro Alexandre Silveira. O tema do encontro, afirma quem acompanhou o encontro, era investimentos no setor de óleo e gás.
O diretor Ricardo Tili manteve silêncio em outros processos que agora estão no TCU. Não se pronunciou no caso de Barra Bonita, da Tradener, que estava com ele desde meados de 2022. Em outubro, pediu vistas para o recurso da Âmbar e não se manifestou mais.
Quem acompanha o caso da Âmbar diz que ela tende a viver um looping no TCU, pois a empresa busca na conciliação trocar as usinas que venceram o PSC pela térmica de Cuiabá, apesar de a regra do certame vetar a mudança.
Em 2022, houve uma longa e desgastante discussão na Aneel sobre essa troca, e a empresa perdeu. A mudança foi defendida pelo então diretor da agência Efrain da Cruz, que era relator do tema. Agora, ele é secretário-excutivo do Ministério de Minas e Energia.
OUTRO LADO
A Folha encaminhou os questionamentos aos órgãos responsáveis e empresas citadas.
O TCU afirmou que, na conciliação, “atua como mediador técnico e não na função típica de controle externo”. “É necessário aguardar decisão do plenário sobre cada um dos casos em análise”, destacou.
O Ministério de Minas e Energia afirmou que “mantém com o TCU, Aneel e ONS tratativas para construir uma solução para tornar flexíveis as térmicas contratadas no governo anterior”.
“O objetivo é garantir suprimento e menor custo ao consumidor, economizando o volume do gás utilizado e reduzindo o custo para as brasileiras e brasileiros, construindo um melhor cenário para todos.”
A Aneel não comentou sobre o procedimento do diretor Ricardo Tili e disse que a Comissão de Solução Consensual decidiu suspender a tramitação do processo da KPS até a definição da solução.
“Por analogia, a relatoria dos demais processos na agência decidiu aguardar as negociações das soluções consensuais entre os órgãos, discutidas no âmbito do TCU.”
A assessoria da KPS afirmou que o encontro com Silveira “fez parte da agenda oficial do ministério e teve como foco os investimentos e o desenvolvimento de novos negócios no setor de energia.”
A assessoria da Tradener disse que empresa entende que o assunto está com o TCU e “pediu a compreensão para evitar comentários”. A EPE tentava conseguir um porta-voz. A Âmbar não retornou à Folha até a publicação deste texto.
ALEXA SALOMÃO / Folhapress