SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na grande cheia de 1941 no Rio Grande do Sul, superada pela atual, Francisco Dutra tinha sete anos. Morava em Jaguarão, na divisa com o Uruguai. “Choveu mais de 20 dias sem parar, transbordou tudo, mas, como a gente morava alto no campo, nada aconteceu conosco”, relata o senhor de 90 anos.
Oito décadas depois, a cheia de 2024 inundou o térreo de seu apartamento em Porto Alegre e Dutra precisou ser carregado pelos bombeiros. Há mais de 20 dias, ele divide o teto com mais de 250 pessoas em um abrigo improvisado no Grêmio Náutico União, clube tradicional da capital.
Bem-humorado e conhecido por outros desalojados como “barão”, apelido que diz ter devido a uma fama pregressa de galã, não reclama. Pelo contrário, gosta de manter o espírito jovem e resume a convivência no abrigo como uma experiência nova. “A gente conversa com muita gente diferente aqui, e a turma do clube não deixa faltar nada.”
Dutra e todos os outros fazem três refeições diárias e precisam se forçar a dormir às 22h, quando a coordenação apaga a luz da quadra. Quase todas as roupas, colchões, carrinhos de bebê, remédios e cobertores do local provêm de doação.
Há atendimento médico, água, frutas, e as crianças têm um espaço para atividades recreativas. Voluntários recolhem o lixo, e os moradores provisórios se encarregam da limpeza.
É um abrigo funcional e cumpre seu papel, segundo as vítimas da enchente. “Não tenho do que me queixar de médicos, psicólogos, assistentes sociais, dentistas, nutricionistas. Eles vêm até de madrugada para ver se meu gurizinho está bem”, diz Fernanda Souza, 35, que está ali com o marido e os três filhos, um deles de cinco meses.
Tirando a impossibilidade de dormir mais de três ou quatro horas as pessoas roncam, as crianças choram e às vezes faz muito frio, Fernanda relata um episódio que se repetiu em outros abrigos. “Teve um homem que tentou colocar a mão debaixo da coberta de uma menina”, diz. A criança o denunciou à polícia e ele deixou o local.
Não foi um caso recorrente no abrigo do Grêmio Náutico, mas, sim, em outros locais, o que levou a prefeitura a criar espaços só para as mulheres.
Além disso, ela diz que a comida às vezes chega fria e cita um episódio em que estava estragada.
A gerência do clube afirma que a única reclamação que recebeu foi a de que as pessoas preferiam macarrão com linguiça em vez de arroz com carne moída. Em nota, diz que no último final de semana os abrigados comeram churrasco e hambúrguer doados por empresários.
Joel Prates, um dos coordenadores, afirma que o abrigo dispõe de um posto médico com cinco voluntários. As equipes trabalham por turnos.
Atualmente, há mais de 647 mil pessoas vivendo fora de casa no estado, sendo 65.762 desabrigados em 805 locais provisórios.
Quando a crise estourou no Rio Grande do Sul, autoridades públicas e a sociedade civil entraram em uma corrida contra o tempo para alocar pessoas, receber e destinar doações, arrecadar alimentos, colchões e cobertores.
O abrigo no Colégio Júlio de Castilhos, escola pública estadual, conhecida como Julinho, chegou a alojar 138 pessoas de diferentes cidades, mas também a população em situação de rua atingida pela água.
A bióloga Rafaela Delacroix virou voluntária por acaso. Levou um cachorro ao colégio e, ao chegar, não encontrou ninguém para receber os animais, que passam um tempo lá e logo são destinados a tutores. Virou a responsável pelo setor.
Criaram grupos de trabalho, escalas para os voluntários e reuniões diárias para alinhar as estratégias e deliberar sobre decisões.
“Nos últimos dias enfrentamos o desafio da exaustão dos coordenadores que estão há três semanas sem parar, alguns trabalhando voluntariamente 15 horas por dia. Há uma diminuição drástica de voluntários e a prefeitura começou a chegar só na segunda semana”, afirma. Hoje, segundo ela, contam com profissionais municipais de assistência social, de saúde mental e de atenção primária de saúde.
“O grande problema é que, a partir de agora, não só o Rio Grande do Sul mas o Brasil terá que lidar com uma outra situação, que é a de fazer um acolhimento permanente de pessoas deslocadas. Isso já é uma realidade”, diz João de Freitas Castro Chaves, defensor público federal.
Segundo ele, por tratar-se de uma situação de deslocados internos por mudanças climáticas, o trabalho do Acnur pode servir como parâmetro. Nos últimos dias, a agência da ONU para refugiados enviou habitações montáveis como as utilizadas em Boa Vista (RR) por refugiados venezuelanos.
Também não é difícil encontrar refugiados nos abrigos da capital gaúcha. A venezuelana Alejandra Ferman, 34, foi salva de jet ski e não conseguirá voltar para o apartamento onde morava. A engenheira de gás deixou o país de origem em 2020 porque estava sem emprego. Foi refugiada em Roraima por três meses antes de se mudar para Porto Alegre. “Perdemos tudo na Venezuela e agora perdemos tudo aqui de novo. Mas imigrante só se apega à vida, não a coisas materiais.”
No Centro Vida, que abriga mais de 600 pessoas na zona norte de Porto Alegre, uma equipe da ONU passava pelos colchões para entrevistar os imigrantes.
Jesus Daniel, outro venezuelano que morava no bairro Sarandi, ainda inundado, diz que o abrigo lhe proporciona condições adequadas. “Ah, tem água, comida, não vou reclamar.”
Outras pessoas reclamam da falta de água quente, da comida e do clima de insegurança à noite.
“Somos bem atendidos, temos comida e atendimento médico. Só que é muito difícil tomar banho. A gente não tem acesso à água quente”, afirma Loreto Alanis, 37.
“É impossível dormir, impossível”, continua ele. “Tirando que a gente tem que estar sempre cuidando das coisas.” Os moradores temem que outros roubem suas doações. Por isso, as famílias criam espécies de barricadas em volta de seus colchões.
O ambiente tem um odor forte e muitos o atribuem à dificuldade de tomar banho com calma. Também há cachorros no espaço ao lado, o que mantém uma trilha sonora de latidos constantes.
Daniel Frittoli, diretor da Agência Humanitária da Igreja Adventista do Sétimo Dia no RS, que administra o abrigo, afirma que é responsável pelo cuidado social dos assistidos, mas que a infraestrutura cabe ao governo estadual, dono do espaço. “Oferecer quantidade de chuveiros suficiente em uma estrutura provisória não desenhada para isso é um desafio. A grande demanda exige bastante dos equipamentos, que às vezes queimam.”
Sobre as refeições, fornecidas por outra organização, diz que “o acompanhamento está sendo feito”.
No Brasil, as normas de serviço socioassistenciais orientam que, em casos de calamidade pública e emergências, os alojamentos precisam garantir condições de salubridade, instalações sanitárias para banho e higiene pessoal, com privacidade individual ou familiar, espaço para realização de refeições, entre outros. Além de energia elétrica, especialistas também citam a internet, a depender do tempo em que as pessoas ficarão alojadas.
Luiz Carlos Pinto, secretário de Inovação de Porto Alegre e coordenador da central de abrigos, afirma que até hoje a prefeitura trabalha para colocar geradores em locais com energia insuficiente. “Estamos fazendo o máximo para sustentar a rede, temos mais 2.700 pessoas abrigadas.”
Há 149 abrigos na capital. São de instituições diversas, mas hoje atuam agora sob cogestão da prefeitura, que disponibiliza banheiros químicos, sustentação de segurança e itens como cobertores, colchões e geradores.
“Nunca é bom ficar em um abrigo, é um ambiente coletivo, sem privacidade, não é uma moradia. Há regras a cumprir e problemas que refletem problemas sociais diversos”, diz.
O secretário diz que a prefeitura conseguiu controlar uma onda de assédio e que há problemas diversos, como vício em entorpecentes, crises abstinência e até briga por salsichão. “Mas todos os abrigos têm uma dignidade mínima.”
Dutra, sobrevivente das duas enchentes, estimava voltar para casa na próxima quinta-feira (23). Porém, com o retorno da chuva em Porto Alegre, terá que passar mais um tempo vivenciando uma novidade que não escolheu.
PAULA SOPRANA E BRUNO SANTOS / Folhapress