É uma injustiça histórica Israel e Hamas negarem a conexão do outro com a terra, diz historiador

WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Um dos mais populares historiadores da atualidade, o britânico Simon Sebag Montefiore, 59, vê Israel diante de uma situação sem precedentes. Os conflitos, que começaram há um ano em Gaza, hoje se estendem para o Líbano e envolvem também o Irã e o Iêmen.

Montefiore é autor de “Jerusalém: A Biografia”, livro sobre a cidade histórica que um de seus parentes distantes ajudou a construir. Ele condena os ataques terroristas do 7 de Outubro, perpetrados pelo Hamas, comparando-os com uma invasão das hordas mongóis na Idade Média. Já sobre Israel, diz que a primeira reação foi uma selvageria, vitimando civis inocentes no território palestino.

Ele afirma que tanto o Hamas como a direita religiosa que governa Israel negam os laços do outro com a terra, o que enxerga como uma “injustiça histórica”. Defende que ambos têm direito a um Estado. O fato de que os palestinos não o possuem, na sua visão, é um fracasso pragmático e moral – além de representar um risco à segurança dos israelenses.

O historiador vem a São Paulo no dia 28 para uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento. Na semana passada, lançou “O Mundo”, pela Companhia das Letras, um livro de 1.384 páginas sobre a história do globo contada a partir da trajetória de algumas famílias.

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PERGUNTA – O sr. escreveu um texto no ano passado comparando o ataque do Hamas contra Israel a uma incursão mongol. Em que sentido?

SIMON SEBAG MONTEFIORE – Foi uma incursão para capturar troféus. É por isso, em parte. Foi também uma incursão no sentido de que a sua ferocidade e atrocidade tinham como finalidade semear o terror.

P – Neste um ano de guerra, Israel matou mais de 40 mil pessoas em Gaza. Qual seria sua comparação?

SSM – Eu compararia com as duas batalhas de Grozni [referência às campanhas da Rússia para dominar a capital rebelde tchetchena, um ambiente urbano, em 1994-1995 e 1999-2000; na primeira, cerca de 30 mil morreram] e com duas batalhas da Segunda Guerra Mundial: Stalingrado e Berlim [respectivamente 1942-1943 e 1945, mas com número estimado de vítimas dezenas de vezes maior que Gaza]. O exemplo mais recente é provavelmente Mossul. Mas nunca existiu nada assim. Há o desafio de lutar em uma cidade que tem toda uma outra subcidade subterrânea. É um campo de batalha único.

P – Boa parte da comunidade internacional repudia a forma como as forças israelenses têm conduzido esta ofensiva.

SSM – Sim, há muita crítica. Os bombardeios iniciais foram muito irresponsáveis. Civis demais morreram naquela etapa. Temos que admitir que houve uma selvageria naquele momento, por parte de Israel. Mas, como eu disse, nunca houve uma guerra travada num campo de batalha tão desafiador. Tampouco houve um orçamento tão vasto usado por uma força para-estatal [Hamas] para criar uma estrutura assim. É um feito concebido às custas da população civil palestina, sob cujas casas essa estrutura foi erguida.

P – Qual sua opinião sobre comparações da situação em Gaza com o Holocausto?

SSM – Discordo de maneira enfática. É errado do ponto de vista factual e moral. Não existe comparação com o Holocausto. Além disso, é um estereótipo antissemita que distorce a história judaica e o que acontece hoje.

P – Pode discorrer sobre por que entende ser uma visão antissemita?

SSM – É um estereótipo que tem sido usado há décadas. Foi inventado por ideólogos soviéticos e acadêmicos de esquerda para atacar o sionismo. Desde que o Hamas tomou o poder em Gaza, vemos comparações com o gueto de Varsóvia, o que tampouco é comparável. Usam tragédias judaicas, em especial o Holocausto, contra o Estado judeu. Tampouco creio que seja genocídio.

P – Por quê?

SSM – É uma guerra extremamente desagradável e perversa entre uma milícia feroz e um Exército regular. A trágica perda de civis é resultado do fato de que o conflito ocorre em uma área populosa.

P – Em muitos círculos acadêmicos, como em várias universidades dos Estados Unidos, descreve-se Israel como um país colonial. O que pensa desse enfoque?

SSM – Discordo dessa narrativa. Não há dúvida de que Israel é um dos Estados que surgiram da era imperial na região, de 1918 a 1948. É também o caso do Iraque, da Síria, do Líbano e da Jordânia. São todos Estados recentes. Muitas das democracias mais bem-sucedidas são nações coloniais. Isso inclui toda a América do Norte e a América do Sul, além da Austrália e da África do Sul, em parte. Muitas nações são criadas pela migração, pelo movimento de pessoas. Escrevi bastante sobre isso no meu livro “O Mundo”.

Israel foi criado por uma mudança do equilíbrio da população entre árabes palestinos e judeus. A imigração judaica mudou esse cenário no que é hoje Israel. Isto não está em discussão. A questão é se eles eram colonizadores ou imperialistas. Eram, com certeza, colonos. Mas, quando você diz “colono”, tem em mente pessoas que não têm conexão com a terra, como no caso das Américas. Israel é um país mais complexo. Os judeus são indígenas nessa terra. Eles não vieram tomar a terra como representantes de um poder colonial.

P – Os palestinos se veem como a população indígena, e centenas de milhares deles foram expulsos.

SSM – A função do historiador é enxergar as duas histórias, como faço em meu livro sobre Jerusalém. Se você conversar com os nacionalistas dos dois lados, eles vão negar a conexão do outro com a terra. Isso é uma injustiça histórica nos dois casos. Ambos os povos têm laços com a terra.

P – O sr. faz menção a esta questão em seu livro, publicado em 2011. O que mudou desde então?

SSM – Houve mudanças colossais, com uma nova era nas relações internacionais. Existiam dois superpoderes que dominavam o mundo como dois jogadores de xadrez. Tivemos depois um período em que os Estados Unidos eram o poder dominante, como em um jogo de paciência. Agora o mundo é como um jogo de computador com muitos jogadores.

Uma das grandes mudanças que vimos é a habilidade de atores independentes de atuar em seu próprio interesse de um modo que não vimos antes. Em 2011, houve a Primavera Árabe, que levou à desintegração da Síria como Estado. O Iraque virou um satélite do Irã, que se expandiu por meio de prepostos em lugares falidos como Síria, Líbano e Gaza. E Israel parecia ser um dos países mais estáveis e mais fortes na região.

P – Concorda que Israel ficou mais religioso e mais de direita?

SSM – Sim, mudou bastante. Agora se parece mais com um país do Oriente Médio. Os religiosos estão muito organizados e ativos na política, e o país se moveu à direita. A causa palestina deixou de ser do interesse de muitos. Pensava-se que poderiam lidar com isso enquanto seguiam adiante com o projeto de assentamentos na Cisjordânia. Ao mesmo tempo, a economia israelense cresceu, com sua sofisticação técnica. Israel se aproximou dos Estados sunitas bem-sucedidos, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.

P – Nesse meio-tempo, vimos uma mudança de opinião, com cada vez mais críticas a Israel. É algo com o que o país deveria se preocupar?

SSM – Sim, deveria. Primeiro porque Israel precisa do apoio internacional. O problema das pessoas religiosas é que acreditam ter apoio de Deus, e essa confiança é absoluta e imutável. Isso é verdade tanto para a direita religiosa de Israel quanto para o Hamas e o Hezbollah. É difícil negociar com essas pessoas.

Israel foi criado pela comunidade internacional, e eles são especialmente sensíveis em relação a esse tópico. As Nações Unidas ofereceram em 1947 um Estado judeu e um árabe. O judeu foi criado, e o árabe, não. Isso é um fracasso pragmático e moral. É preciso existir um Estado palestino. O governo israelense não pode negar para sempre que isso é essencial. Qualquer administração que não tiver esse processo em mente não será justa com os palestinos —e será perigosa para Israel. Creio de modo apaixonado no direito dos palestinos a um Estado. Foi por isso que escrevi o livro.

P – O sr. crê que Israel possa ganhar a guerra? O preço é aceitável?

SSM – Israel não tem opção. Podemos criticar como foi feito e debater se é justo. Critico muitas coisas de Israel, em especial este governo. Mas Israel estava em paz com o Hamas e com o Hezbollah. Havia uma longa trégua, que foi quebrada pelo Hamas no 7 de Outubro. O Hezbollah começou a disparar foguetes contra Israel. Você diria que qualquer outro Estado não responderia de maneira militar aos ataques? A Rússia atacou a Ucrânia, a Ucrânia resistiu. Hamas e Hezbollah atacaram Israel, Israel resistiu. Essas foram guerras que eles escolheram.

P – O apoio a Tel Aviv no início da guerra já diminuiu. Por quê?

SSM – As primeiras etapas da guerra foram ferozes de um modo muito descontrolado. As imagens daqueles bombardeios chocaram o mundo e fizeram com que Israel perdesse muito apoio. É como as relações internacionais funcionam. Mas a falha de Israel não foi apenas a sua conduta no início da guerra, mas também as declarações de diversos ministros do governo, que fizeram ameaças a todo o povo de Gaza. Os únicos alvos justificáveis são os membros do Hamas. Ponto final. Não existe nenhuma justificativa para ameaçar os civis.

P – Estamos conversando, agora, em um contexto bastante sombrio…

SSM – Há a destruição, os assassinatos, a tomada de reféns… Não é o futuro que as pessoas deveriam querer para seus filhos. Haverá algum tipo de cansaço com a guerra. Às vezes de grandes tragédias vem o desejo de negociar. Isso vai ocorrer em algum momento.

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RAIO-X | SIMON SEBAG MONTEFIORE, 59

Historiador britânico, nasceu em Londres e estudou na Universidade de Cambridge. É autor dos premiados livros “Jerusalém: A Biografia” e “O Mundo”, ambos publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Escreveu também obras sobre história russa. Apresentou, ainda, séries de TV na rede britânica BBC. Descende de uma família que teve um papel central na criação de bairros judaicos em Jerusalém no final do século 19.

DIEGO BERCITO / Folhapress

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