Ele foi albergado, incentivou quem mora na rua a ler e se tornou bibliotecário

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O bibliotecário Lourival Lopes Cancela, 53, é categórico ao afirmar: “os livros salvaram a minha vida”. Até se tornar servidor estadual e trabalhar no que diz amar, ele teve uma trajetória desafiadora ao longo de quase 20 anos.

A jornada que acabou rodeada de livros e histórias, começou em 2002, quando entrou em depressão após perder o emprego e ter que vender seu único bem, uma casa na periferia de Vitória (ES). Com os R$ 3.000 que restaram, mudou-se para São Paulo, onde foi assaltado logo no primeiro dia, e teve de morar nas ruas.

Depois de meses trabalhando com bicos, Cancela decidiu se abrigar no Arsenal da Esperança, albergue instalado na antiga Hospedaria dos Imigrantes, no Brás, centro de São Paulo, que recebe 1.200 pessoas em situação de vulnerabilidade por dia.

A casa, ao lado do Museu do Imigrante, oferecia espaços que poderiam auxiliar na transformação de vidas, segundo ele, e entre eles estava a biblioteca.

“Hoje eu falo biblioteca, mas era um espaço que tinha alguns livros em estantes. Todo tipo de material que a casa ganhava, independentemente do seu estado físico, era colocado ali sem uma ordem. Era uma organização muito leiga. Uma equipe de voluntários, funcionários dos Correios, dedicava algum tempo livre para aquele espaço. Mesmo assim, só abria esporadicamente.”

Ele se tornou frequentador assíduo do local improvisado e se envolveu mais com as atividades da instituição, trabalhando na lavanderia e participando de missas e do coral.

“Isso me afastava das ruas porque eu podia ficar na casa durante o dia, almoçar ali. Do contrário, eu teria que sair de manhã e voltar no fim da tarde. Então, assim, não precisava estar enfrentar condições difíceis em busca de alimentação como em outros albergues.”

A falta de voluntários que mantivessem a biblioteca funcionando todos os dias levou a equipe do albergue a propor que os moradores se envolvessem na administração da livraria. Notando seu fascínio pelos livros, a instituição convidou Cancela para trabalhar ali, e ele passou a receber uma bolsa de R$ 120, num contrato de oito meses.

Ele adotou uma abordagem de mais proximidade com os usuários, a maioria pessoas morando nas ruas ou no albergue, tratando-os pelo nome e entendendo suas preferências de leitura.

O bibliotecário fez uma seleção criteriosa do acervo e, aos poucos, removeu materiais didáticos desatualizados e itens irrelevantes. A coleção de livros, muitos inutilizáveis ou rabiscados, foi reduzida de 20 mil para 7.000.

“Na contramão, havia muitos materiais em boas condições escondidos atrás do balcão ou até dentro do banheiro, transformando o espaço em um verdadeiro depósito. Tive a oportunidade de transformar aquele lugar em um centro de excelência, implementando práticas de organização e revitalização dos livros.”

Cancela comandou uma iniciativa de reciclagem do material descartado e com a verba arrecadada comprou exemplares novos, recém-lançados. “O pessoal lia as obras que mal tinham chegado ao público geral.”

A biblioteca virou um “point”. As obras mais procuradas eram de autoajuda, espíritas e sobre crimes.

“Todos do Chico Xavier, como ‘Nosso Lar’, eram disputados, estavam sempre emprestados. Assim como Zíbia Gasparetto e a mestre do suspense, a inglesa Agatha Christie. As pessoas que moram na rua leem, e gostam de coisas boas, dos clássicos.”

O contrato dele foi renovado por mais oito meses, só que nessa nova fase ele foi “emprestado” para a biblioteca do Museu dos Imigrantes, a poucos metros do albergue.

“Encontrei ali minha verdadeira vocação. Naquele espaço, especializado em imigração, adquiri um conhecimento técnico que levei para o Arsenal. Tive autonomia para organizar o espaço, seguindo o modelo das bibliotecas públicas.”

Enquanto trabalhava ali, Cancela foi incentivado a estudar e se capacitar como técnico em biblioteca. Ganhou uma bolsa no Senac e, depois que se formou, ingressou na faculdade biblioteconomia e ciência, que pagou com o dinheiro que conseguiu economizar de seus estágios.

Em 2011, seu projeto na biblioteca do albergue se tornou um dos finalistas do prêmio Viva Leitura, do Ministério da Educação. Cancela pegou um avião pela primeira vez na vida, rumo ao Rio de Janeiro, para ali ser consagrado o vencedor.

Além da premiação em dinheiro, cerca de R$ 25 mil, ele ganhou muitos livros, que doou para a biblioteca onde começou sua carreira. A verba da premiação ele investiu em uma pós-graduação em gestão de documentos e na faculdade de pedagogia.

Dois anos depois, ele prestou concurso público e hoje ele analista sociocultural-bibliotecário da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, onde acompanha a organização das bibliotecas de 93 escolas dos distritos de Jardim São Luís, Capão Redondo e Jardim Ângela, na zona sul, que alcançam 100 mil estudantes.

Dia 12 de março, é celebrado o Dia do Bibliotecário.

TATIANA CAVALCANTI / Folhapress

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