BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Um país invadido pela Rússia nas últimas décadas e com territórios autônomos ocupados por tropas do vizinho responde neste sábado (26) nas urnas se engole o passado ou se arrisca um futuro mais perto da Europa e de confusões.
Geórgia, uma ex-república soviética comandada por uma presidente pró-adesão à União Europeia, promove eleições legislativas em que o partido dominante no Parlamento, Sonho Georgiano, flerta abertamente com Moscou em nome de uma guinada autoritária.
Quase um roteiro básico recente do Leste Europeu, como o apertado pleito em Moldova, no último fim de semana, com agravantes históricos, antigos e recentes.
Se em Moldova chamou a atenção uma avassaladora campanha de desinformação e compra de votos, responsável por quase inviabilizar uma consulta popular sobre adesão ao bloco, na Geórgia uma versão bem russa de soft power tornou o processo de influência na política local ainda mais insidioso.
No meio do Cáucaso, o país tem localização estratégica, no caminho de grandes canais de comércio e energia entre Europa e Ásia, como a Rota da Seda chinesa e gasodutos. Ganhou também o papel de corredor informal para negócios russos desde a invasão da Ucrânia, em 2022, e o subsequente boicote ocidental. Oligarcas e empresas da Rússia se transferiram para o país para driblar sanções. Até rotas aéreas foram restabelecidas entre os países.
Explicação para a abordagem russa mais elaborada do que a percebida em outros locais seria garantir esse ambiente de negócios e também neutralizar diferenças de longa data. A Geórgia convive com duas regiões autônomas, Abkházia e Ossétia do Sul, que se transformaram em guerra em 2008 após o país ensaiar uma aproximação com a Otan, a aliança de defesa ocidental.
O conflito aprofundou o viés anti-Rússia na política local. Fez surgir novas forças, como Salome Zurabishvili, uma diplomata francesa, filha de imigrantes georgianos, que trocou de nacionalidade e foi eleita presidente em 2018. O processo de aproximação com a União Europeia se intensificou, a ponto de o país pleitear adesão ao bloco a partir do advento da guerra na Ucrânia.
No fim do ano passado, em meio à tensão crescente com a Rússia, Bruxelas oficializou a candidatura da Geórgia, mas o processo foi paralisado em junho último. Ao mesmo tempo que o governo de turno buscava a integração, o Sonho Georgiano, partido majoritário no Legislativo desde 2012, fazia o caminho inverso, em direção a Moscou.
Em maio, a sigla foi uma das principais patrocinadoras da polêmica lei que obriga ONGs e veículos de imprensa com mais de 20% de financiamento vindo do exterior a se registrarem como entidades que “servem aos interesses de uma potência estrangeira”. A carta tem evidente inspiração russa, que usa artifício parecido há anos para calar dissidentes.
Zurabishvili vetou o instrumento, mas o Parlamento derrubou a decisão em meio a uma onda de protestos.
A adesão à UE tem grande apoio popular, o que, de acordo com pesquisas de opinião, não se reflete nas intenções de voto para o Parlamento. A bancada majoritária continuaria com o Sonho Georgiano. A questão é saber o tamanho dessa bancada. Uma maioria constitucional manteria o partido em uma trilha que, analistas projetam, redundaria em uma autocracia.
Em anos anteriores, a sigla já havia conseguido aprovar uma cláusula de barreira e tentado proibir coalizões. Agora, Zurabishvili propõe uma união entre os grandes partidos de oposição para apear os oponentes do poder e formar um “governo técnico” até que a adesão à UE volte a prosperar.
Sonho Georgiano é obra de Bidzina Ivanishvili, que fez fortuna na conturbada Rússia dos anos 1990 e patrocina a aventura autoritária local, que inclui itens do corolário conservador, como leis de constrangimento à população LGBTQIA+. Seu antípoda preferido não é a presidente atual, mas Mikheil Saakashvili, ex-mandatário e ex-líder da oposição que o bilionário tenta transformar em responsável pela guerra na Ossétia do Sul.
Tirar o peso das invasões das costas de Vladimir Putin é o principal contorcionismo da propaganda russa, que Ivanishvili repetiu nos últimos eventos da campanha. A narrativa ainda promete investimento russo e melhorias nas empobrecidas regiões autônomas. O discurso fica mais incoerente quando se nota que o partido também promete a adesão à Europa até 2030, algo incompatível com a influência russa.
“Não influenciamos nem interferimos de nenhuma maneira nos assuntos internos da Geórgia. Mas estamos percebendo ingerência ocidental sem precedentes”, declarou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, sem as listá-las. União Europeia e Estados Unidos manifestam preocupação com os rumos do país há meses, e as autoridades eleitorais temem irregularidades como compra de votos e intimidações.
JOSÉ HENRIQUE MARIANTE / Folhapress