Eleitor da Europa pede proteção contra ameaças, diz ex-premiê da Itália

MILÃO, ITÁLIA (FOLHARPESS) – O resultado da votação para o Parlamento Europeu estará ligado à percepção dos eleitores sobre a capacidade das forças políticas de responderem à necessidade de proteção, um sentimento dominante que permeia todos os países do bloco. A afirmação é do ex-primeiro-ministro italiano Enrico Letta, atual presidente do Instituto Jacques Delors, em Paris.

Desde quinta-feira (6) e até este domingo (9), cerca de 370 milhões de pessoas em 27 países podem votar para escolher quem vai ocupar os 720 assentos da próxima legislatura europeia.

Segundo Letta, proteção é a palavra-chave deste momento na Europa, especialmente contra ameaças externas, em relação à invasão russa na Ucrânia, mas também às fronteiras do mar Mediterrâneo, sujeitas a fenômenos migratórios. E proteção também diante da perda de competitividade do bloco no mercado global.

“As pessoas pedem proteção, e então veremos o que vai sair das urnas, se esse pedido de proteção vai premiar mais partidos de direita ou de esquerda”, disse em entrevista à Folha.

Esquivando-se de comentar possíveis resultados, como os bons desempenhos dos partidos de Marine Le Pen, na França, e de Giorgia Meloni, na Itália, Letta desconversa sobre tramas de bastidores que o apontam como próximo presidente do Conselho Europeu. “São só fofocas.”

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*Folha – Como avalia a qualidade desta campanha e como acha que esta eleição vai entrar para a história?*

*Enrico Letta -* Esta campanha é melhor do que aquela de cinco anos atrás. Em 2019, as palavras mais recorrentes eram brexit, frexit, italexit, dexit [em referência a movimentos que defendiam a saída da UE de países como Reino Unido, França, Itália e Alemanha]. Ou seja, depois daquele grande sucesso de comunicação com a palavra brexit, que virou uma marca, a campanha foi muito condicionada pela tendência dos grandes países europeus de fazerem a mesma coisa. Era o tema principal.

Hoje “os exit” saíram de cena. O que aconteceu nos últimos anos, com a crise da Covid-19, a invasão russa na Ucrânia e a crise energética, fez com que todos, à direita e à esquerda, dessem-se conta de que a União Europeia e a integração são insubstituíveis. Na campanha de agora todos discutem sobre modalidades pelas quais administrar a Europa, mas ninguém mais fala de sair dela. E isso é um enorme passo adiante.

*Folha – As forças de ultradireita devem sair mais fortes das urnas, segundo as pesquisas. Como define este momento político na Europa, e quais são as causas?*

*Enrico Letta -* É um período em que na Europa se sente, em todos os países, a necessidade de proteção. Esta é a palavra-chave. Proteção contra ameaças externas, pois tem uma grande parte da Europa que faz fronteira coma Rússia ou com a guerra. Tem uma parte que faz fronteira com o Mediterrâneo, onde a instabilidade política ligada a fenômenos de migração também é importante. E a Europa está perdendo competitividade. As pessoas pedem proteção, e então veremos o que vai sair das urnas, se esse pedido de proteção vai premiar mais os partidos de direita ou os de esquerda. O que é certo é que será preciso dar uma resposta a essa demanda.

*Folha – Quais são as questões mais urgentes para UE nos próximos cinco anos?*

*Enrico Letta -* São as três grandes despesas, novas necessidades, que a UE deverá financiar. A primeira é a transição verde e social. A segunda são segurança e defesa. A terceira é o alargamento do bloco. A primeira é certamente a mais importante. A transição terá custos muito altos, o Orçamento europeu é muito pequeno para isso, então serão necessárias medidas extraordinárias para cobrir esses custos.

*Folha – E em relação à segurança?*

*Enrico Letta -* Aqui o problema é que nos acostumamos a ter o guarda-chuva norte-americano. A Otan permanece como um ponto de referência e insubstituível, mas o problema é como ter condições de ter uma defesa mais integrada e uma Europa mais eficaz nessa área. É preciso ter mais integração, o que é outro objetivo difícil, porque existem muitas diferenças entre os países. Tem aqueles, como Polônia e Grécia, que gastam 4% do PIB em defesa, e outros como Itália, que gasta 1,3%. São coisas complicadas para administrar.

E a outra questão complicada é a ampliação do bloco. Os próximos dez anos serão de integração com países dos Bálcãs ocidentais, como Montenegro, Albânia, Bósnia, Sérvia, Macedônia do Norte e Kosovo, além da Ucrânia.

*Folha – Na área da defesa, quanto o sr. está preocupado com o possível retorno de Donald Trump à Casa Branca?*

*Enrico Letta -* Muito. Todas as coisas que eu disse até agora precisam de um contexto internacional estável e de alianças sólidas. Com os Estados Unidos do presidente Joe Biden se encontrou um modus vivendi que funciona. As ameaças de Trump são muito perigosas para o futuro das relações entre Europa e EUA. Confesso que estou e estamos muito preocupados. As eleições europeias são importantes, mas as dos EUA em novembro serão igualmente importantes.

*Folha – O ex-premiê Mario Monti acaba de lançar um livro que fala de demagonia, ou seja de uma profunda crise da democracia nos países ocidentais. Para o sr., qual o estado atual da democracia dentro da UE?*

*Enrico Letta -* A Europa vive certamente uma fase de dificuldade, mas que não é típica ou só sua. O mundo ocidental vive hoje uma fase de fadiga democrática evidente. Nestas eleições, o primeiro número que eu vou querer conferir será aquele da participação no voto. Espero que seja superior do que em 2019, quando se chegou aos 50%. Mas objetivamente é necessária uma renovação democrática forte.

*Folha – Como fazer isso?*

*Enrico Letta -* É preciso, acima de tudo, que haja uma capacidade de tornar a participação dos cidadãos algo que não dura somente um dia, na hora de votar. Tenho convicção de que é preciso introduzir novas formas de democracia participativa. Não basta ser uma democracia só representativa, como conhecemos até agora.

*Folha – Que aspectos da Europa idealizada por Jacques Delors [ex-presidente da Comissão Europeia, morto em 2023] perderam força nos últimos anos?*

*Enrico Letta -* A coisa principal é integrar aqueles mercados que ainda não estão integrados: energia, telecomunicações e serviços financeiros. São áreas fundamentais para a competitividade, as quais os países-membros disseram a Delors, em 1985, que deveriam ter a dimensão nacional, não europeia. Hoje estamos pagando o preço disso. Não temos um mercado europeu nesses três setores –temos 27 mercados fragmentados para cada um. Isso significa que o tamanho das empresas é muito pequeno, num mundo em que EUA, Brasil, Índia e China são enormes. A prioridade hoje é fazer o mercado único criado por Delors nesses setores.

*Folha – Falando em Brasil, como vê hoje a perspectiva de um acordo entre UE e Mercosul?*

*Enrico Letta -* Sou a favor de seguir em frente com as negociações. Tenho muita confiança no que o Brasil pode fazer no futuro e acho que devemos trabalhar muito nas relações entre Brasil e Europa. Acho que com o presidente Lula podemos encurtar essas distâncias. É uma das grandes escolhas estratégicas dos próximos anos.

*Folha – A posição do presidente Lula sobre a Guerra da Ucrânia, de neutralidade, pode ser um obstáculo neste momento?*

*Enrico Letta -* Bem, é óbvio que é uma posição diferente daquela europeia. Mas é uma posição com a qual devemos dialogar, justamente pela importância do papel que o Brasil tem.

*Folha – Voltando às eleições. É preocupante para a UE ter um presidente como Emmanuel Macron, um proeminente defensor da integração, enfraquecido internamente, caso os resultados da pesquisas na França se confirmem?*

*Enrico Letta -* Esperarei para comentar os votos, não as pesquisas. Mas me limito a dizer que Macron desempenhou um papel fundamental, é um dos grandes líderes europeus.

*Folha – Como avalia o papel de Giorgia Meloni, cortejada seja por Ursula Von der Leyen, seja por Marine Le Pen?*

*Enrico Letta -* Tem muita especulação nestes dias, vamos esperar o dia depois do voto.

*Folha – Dá como certo o segundo mandato de Von der Leyen?*

Ela é uma candidata forte, foi bem nos últimos cinco anos e fez uma boa campanha. Trabalhei muito bem com ela.

*Folha – Nos últimos dias, jornais italianos falaram de seu nome como possível sucessor de Charles Michel no Conselho Europeu. O sr. está disponível para esse papel?*

*Enrico Letta -* São só fofocas. Faço meu trabalho e só.

*RAIO-X | ENRICO LETTA, 57*

Foi primeiro-ministro da Itália (2013-2014) e é o atual presidente do Instituto Jacques Delors, think tank em Paris dedicado a questões europeias. Foi presidente do Partido Democrático italiano (2021-2023), ministro em três ocasiões e eurodeputado. Está no sexto mandato como deputado federal.

MICHELE OLIVEIRA / Folhapress

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