SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No ateliê no segundo andar de um sobrado numa rua arborizada próxima ao parque Ibirapuera, em São Paulo, um armário guardava frascos de vidro com pigmentos em azul, vermelho, amarelo e tantas outras cores, como se fossem relíquias. Ao lado, ficava um cavalete com uma tela de pintura.
Era o ambiente de trabalho de Eleonore Koch, uma pintora meio esquecida por décadas no Brasil mas que teve a sorte de ver o começo do reconhecimento e da valorização de sua extensa obra antes de morrer, em 2018, aos 92 anos.
Desde então, a discípula de Volpi foi tema de várias exposições, de um leilão, e participou da Bienal de São Paulo em 2021. Não é à toa, portanto, que uma tela sua era vendida a R$ 2,8 milhões na feira SP-Arte, há poucos dias.
As celebrações em torno desta imigrante judia que aportou em Santos criança, fugindo do nazismo com a família, ganham agora outro patamar. O Museu de Arte Contemporânea da USP, o MAC-USP, acaba de abrir a maior exposição já feita sobre a pintora, com 190 obras de todos os momentos de sua produção, boa parte das quais nunca antes mostrada.
Em paralelo, o festival É Tudo Verdade faz quatro exibições duas em São Paulo e duas no Rio de Janeiro de um documentário de 80 minutos sobre a vida de Koch, dirigido por Jorge Bodanzky. E, no segundo semestre, chegará às prateleiras um livro com diversas análises acerca de sua pintura, a exemplo de um texto de Ludmilla Fonseca que relaciona a composição pictórica de seus quadros com o cinema.
“A conversa com o cinema é muito interessante, eu acho que é o barato do trabalho dela”, afirma Fernanda Pitta, a organizadora da mostra. Nos quadros de Koch, “você está diante de um cenário que não tem ação, mas que evoca a possibilidade de uma ação é a possibilidade da presença da figura humana, que ali está ausente”.
Em suas telas, Koch criava ambientações ao pintar objetos de seu cotidiano doméstico uma xícara, um bule, uma mesinha lateral, uma cadeira e elementos de parques de Londres e Rio de Janeiro, duas das cidades onde morou além de São Paulo, como arcos, bancos e árvores.
Ao abolir a perspectiva e os sombreados, a artista prezava por uma luz uniforme, de modo que figura e fundo se confundem em pinturas que transmitem a sensação de solidão.
Seu grande mestre foi Alfredo Volpi, com quem estabeleceu uma relação de maior proximidade do que de aluna e professor. No filme de Bodanzky, a artista conta que, embora o pintor das bandeirinhas não fosse de muitas palavras, disse a ela para parar de pintar com óleo e mudar para a têmpera as cores espessas da tinta são uma marca dos trabalhos de Koch, assim como o traço visível das pinceladas.
“Era uma relação de amor e ódio, muito mais ampla do que só a pintura”, conta Koch no documentário, sobre sua convivência nos fins de semana com o artista mineiro, com quem cozinhava e almoçava espaguete ao alho e óleo. Ela também se correspondia com o filho e a filha de Volpi, as duas únicas figuras humanas que pintou durante sua carreira ambas as telas estão expostas no MAC-USP.
No filme, intitulado “As Cores e os Amores de Lore”, apelido pelo qual era conhecida, a artista conta se ressentir da falta de reconhecimento de seu trabalho no Brasil e do fato de ter sido recusada várias vezes na Bienal de São Paulo até finalmente ser aceita, com duas pinturas de carrinhos japoneses expostas na edição de 1961 e que também podem ser vistas no MAC-USP, junto à uma fotografia de época.
Sua realização como artista aconteceu em Londres, para onde se mudou em 1968, depois de largar um emprego de secretária no Rio de Janeiro. Na capital da Inglaterra, conheceu o colecionador Alistair McAlpine, um homem muito rico que passou a comprar sua produção, permitindo a Koch, pela primeira vez, se sustentar com a pintura. “Uma coisa assim é destino. Ele era maravilhoso”, ela diz no documentário.
O cineasta acompanhou os últimos cinco anos da vida de Koch. Mas Bodanzky não tinha, inicialmente, a intenção de fazer um filme sobre a artista, a quem chegou depois de descobrir que a pintora tinha relação com Rosa Bodanzky, sua mãe, também uma imigrante judia instalada em São Paulo Koch aprendeu encadernação com Rosa, na extinta livraria Cosmos.
Bodanzky estava atrás de informações sobre a sua mãe, e conforme convivia com a artista conta ter descoberto a vida de Koch e percebido que ali havia material para um filme. O resultado é um documentário de tons pessoais, que também funciona como um ensaio poético sobre a história do cineasta. Sua família, assim como a da pintora, fazia parte da intelectualidade paulistana de meados do século 20.
O roteiro costura o desenvolvimento da obra da artista com a sua vida afetiva. Koch fez uma opção radical pela arte, e nunca casou nem teve filhos. Não ter casado era a grande questão da vida dela, “ela falava isso o tempo todo, da primeira à última conversa”, afirma Bodanzky.
Mas, como se vê no documentário, isso não significa necessariamente solidão a artista teve vários amores. O filme mostra cartas de seus amantes, seu caso com o crítico e professor Paulo Emílio Sales Gomes e suas aventuras como mulher solteira numa época em que o esperado era constituir uma família.
À certa altura, descontente com a falta de aceitação pelo seu trabalho no Brasil, ela diz, aparentemente sem arrependimento: “Se eu não existia como pintora, eu existia como mulher.”
ELEONORE KOCH: EM CENA
Quando Até 14 de julho. Ter. a dom., das 10h às 21h
Onde MAC-USP – av. Pedro Álvares Cabral, 1301, São Paulo
Preço Grátis
AS CORES E AMORES DE LORE
Quando SP: 12/04, às 18h, no cine Itaú Augusta; 14/04, às 19h30, na Cinemateca. RJ: 13/04, às 18h, no Net Botafogo; 14/04, às 15h, no Net Rio
Preço Grátis
Classificação Livre
Produção Brasil, 2024
Direção Jorge Bodanzky
JOÃO PERASSOLO / Folhapress