LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Um dos principais nomes ligados à pesquisa da família imperial brasileira, a arqueóloga e historiadora Valdirene Ambiel afirma que a cripta construída na cidade de São Paulo para abrigar os restos mortais da realeza tem sido historicamente negligenciada. Problemas como umidade, infiltrações e vazamentos se acumulam e, atualmente, o espaço se encontra fechado para a visitação.
“A cripta recebeu uma espécie de maquiagem para o bicentenário da Independência”, diz a pesquisadora.
Segundo ela, em 21 de outubro de 2022, menos de dois meses depois da efeméride, os problemas estruturais já estavam visíveis. “Era uma tristeza. Fiz uma visita ao espaço e verifiquei que já havia um balde para conter a água de uma goteira.”
Estão sepultados no local dom Pedro 1º (1798-1834) e as imperatrizes d. Leopoldina (1797-1826) e d. Amélia (1812-1873). Segundo Ambiel, que dedicou seu mestrado e doutorado na USP à análise dos restos mortais da família, as condições degradadas ameaçam a preservação dos remanescentes humanos.
“Há muitas questões estruturais no monumento da Independência. Eles não começaram agora, eles vêm desde as décadas de 1970 e 1980. Ainda criança, eu costumava visitá-lo com o meu pai e me deparava com a cripta muitas vezes interditada, normalmente por infiltrações.”
A arqueóloga destaca que o local onde a cripta foi construída, uma área de aterro do rio, dificulta a manutenção e, justamente por isso, requer cuidados especiais de conservação.
Localizada no parque da Independência, na zona sul paulistana, a cripta é de responsabilidade da prefeitura, com gestão vinculada à Secretária Municipal de Cultura.
O site oficial da cripta limita-se a informar que o espaço está “temporariamente fechado”, sem outras explicações ou previsão de reabertura. Na porta de entrada do monumento, uma folha de papel A4 escrita à mão diz “fechado para reforma”.
Em nota, a gestão Ricardo Nunes (MDB) diz que o cronograma das obras foi ajustado, mas que restam detalhes finais de acabamento e instalação de novas luminárias. A previsão, acrescenta a prefeitura, é que tudo esteja pronto no início de outubro.
Entre as mudanças em curso no local estão a instalação de sanitários e rampas acessíveis e a correção dos problemas de infiltração.
O mausoléu fica embaixo do monumento à Independência, que reúne estátuas das principais figuras ligadas à emancipação brasileira, e começou a ser construído em 1952.
Os restos mortais da primeira imperatriz brasileira, Maria Leopoldina, foram os primeiros a chegar, transportados do Rio de Janeiro em 1954, no âmbito das comemorações do quarto centenário da cidade de São Paulo.
Provenientes de Portugal, os despojos de Pedro 1º foram transferidos para a cripta em 1972, em um evento que foi transformado em propaganda pela ditadura militar brasileira.
Os restos mortais de d. Amélia, que estavam sepultados em Lisboa, foram incorporados em 1982. Devido às pequenas dimensões da cripta, a segunda imperatriz brasileira acabou sendo acomodada, literalmente, em um espaço dentro da parede.
“A cripta foi feita para os remanescentes humanos de d. Pedro 1 e de d. Leopoldina, não de d. Amélia”, diz a pesquisadora, que destaca a falta de contexto histórico para a presença da segunda imperatriz no monumento. “Ela tinha dez anos em 1822 e não tinha ligação com a independência do Brasil, portanto, não deveria estar na cripta. As autoridades municipais tiveram que ‘improvisar’ um espaço para ela.”
Pedro 1º e Leopoldina, por sua vez, têm seus sarcófagos expostos em destaque.
Segundo Ambiel, a atual localização dos restos mortais de d. Amélia, ainda mais sujeito à umidade do que o dos demais, representa um risco à conservação.
A prefeitura, porém, afirma que já houve a troca do sistema de ar condicionado, o que “já está garantindo melhores e mais estáveis condições de temperatura no espaço para a preservação dos despojos de Amélia”.
Na época em que realizou sua dissertação de mestrado, defendida em 2013, a pesquisadora teve autorização para exumar os vestígios da família e tornou-se a primeira cientista a conduzir um estudo detalhado do conjunto.
O trabalho teve grande repercussão por causa de várias revelações, entre as quais a ausência de fratura no fêmur de d. Leopoldina. Alguns historiadores afirmavam até então, apesar da falta de documentação, que a austríaca teria morrido por complicações após ter sido empurrada de uma escadaria por dom Pedro.
“Na época da exumação, felizmente encontramos os vestígios de dona Amélia em boas condições, mas isso é, muito provavelmente, resultado do trabalho feito pelas equipes de Portugal e do Brasil quando o corpo foi transferido”, analisa.
Após a exumação, a equipe de Ambiel fez um novo procedimento de embalsamamento em Amélia. Os custos dos materiais utilizados ficaram a cargo do Serviço de Verificação de Óbitos da Capital, que pertence à USP.
A pesquisadora afirma que chegou a pagar com recursos próprios além de ter recolhido doações com a família e com professores da USP por obras de restauro e conservação no espaço dedicado à d. Amélia na cripta.
As notas fiscais, reunidas em um caderno com dezenas de páginas de anotações minuciosas, mostram que os recursos foram investidos em diversos itens, incluindo mármores e cimento.
“Até a máquina para medir a umidade fui eu que comprei”, diz Ambiel, que se voluntariou para fazer semanalmente, e sem custos para a prefeitura, a avaliação do estado de conservação da imperatriz.
“Eu ia toda segunda-feira de manhã, que é quando a cripta estava fechada”, explica. “Teve dia de Natal que eu amanheci do lado da d. Amélia, feriados prolongados, tudo.”
Segundo Ambiel, sem aviso prévio, em fevereiro de 2018 na administração de João Doria, então no PSDB, ela passou a ser impedida de realizar o monitoramento.
Na comunidade acadêmica, o posicionamento da pesquisadora, que reclamava das condições precárias e cobrava publicamente melhorias no espaço, é apontado como uma das motivações para a irritação de políticos.
“O que motivou o meu trabalho foi uma preocupação com os remanescentes humanos dos primeiros imperadores do Brasil para as gerações futuras. Sempre fiz o possível para tentar preservá-los”, conta.
A pesquisadora cobra mais transparência nos gastos públicos, nas obras e na gestão do espaço.
“O 7 de setembro é uma data importantíssima para entender o país chamado Brasil e o povo brasileiro”, afirma. “Os restos mortais da família imperial merecem mais respeito.”
GIULIANA MIRANDA / Folhapress