Em países com aborto legal, redes de ‘socorristas’ mudam foco e viram alvo da Justiça

CIDADE DO PANAMÁ, PANAMÁ (FOLHAPRESS) – Por quase uma década, o trabalho delas era conseguir que mulheres que tentavam realizar um aborto conseguissem fazê-lo clandestinamente, mas de forma segura. Até que, em 30 de dezembro de 2020, tudo mudou.

Naquele dia, o Senado da Argentina aprovou o direito de a mulher optar pelo aborto até a 14ª semana de gestação. A legalização do procedimento transformou a atuação das Socorristas en Red, organização ativista pelo direito ao aborto criada em 2012.

O grupo é o mais notório das chamadas redes de acompanhantes —coletivos que proliferaram na América Latina para fornecer abortos seguros em países onde ele é ilegal. Atualmente, são 23 redes em 17 países, segundo a organização transnacional Red Compañera.

Frente à dúvida do que ocorreria com as acompanhantes a partir da descriminalização do aborto no país, uma única resposta era certa: as socorristas não se desarticulariam. “O que decidimos fazer depois da existência da lei foi projetá-la, torná-la viva”, afirma Ruth Zurbriggen, uma das fundadoras das Socorristas en Red.

Zurbriggen conversou com a reportagem em junho, durante a 7ª Conferência do Clacai (Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro), na Cidade do Panamá. Segundo a ativista, depois da descriminalização, a atuação do movimento se dividiu em dois eixos principais.

Se antes as socorristas atuavam abertamente à margem da lei, a partir de 2021 elas passaram a agir como uma espécie de fiscalizadoras da legislação: além de cobrar acesso legal e gratuito ao procedimento no sistema de saúde argentino, ocuparam-se de divulgar a mudança na lei. “Queremos disseminar socialmente a descriminalização, para que mais pessoas possam reivindicar seus direitos.”

Mas a rede não parou de realizar acompanhamentos. De acordo com dados do movimento, foram atendidas quase 13.300 pessoas em 2022, das quais apenas 10% realizaram o aborto no sistema de saúde. A grande maioria procurou as socorristas para realizar o chamado “aborto autogestionado”.

Esse tipo de aborto é feito com o uso de remédios como a mifepristona e o misoprostol e realizado em casa, com as gestantes monitoradas pelas acompanhantes para possíveis sinais de risco de complicação. A possibilidade é hoje facilitada pelo fato de os medicamentos serem comercializados em farmácias locais, como forma de cumprir determinações da lei de legalização.

Durante os anos de proibição, era esse o procedimento oferecido pelas socorristas. “Era a única opção que nós podíamos oferecer”, diz Zurbriggen.

Também chamado de aborto medicamentoso, o procedimento é considerado seguro pela OMS (Organização Mundial da Saúde) durante o primeiro trimestre de gestação. Estudo realizado com mais de 53 mil mulheres no Reino Unido e publicado em 2021 na revista BJOG, do Colégio Real de Obstetras e Ginecologistas, mostrou que o risco de complicações de um aborto medicamentoso por telemedicina foi semelhante ao do realizado com acompanhamento médico presencial.

Na Argentina, as Socorristas dizem não ver motivos para deixar de oferecer o acompanhamento autogestionado, apesar de a legalização permitir às mulheres o caminho hospitalar. No caso das 1.404 mulheres acompanhadas pelas socorristas pelo sistema de saúde em 2022, 70% apenas fizeram a triagem no hospital para buscar o remédio e depois fizeram o procedimento em casa, sem internação.

Para Zurbriggen, são várias as razões para que as mulheres sigam buscando as socorristas. “É uma forma menos burocrática, e, além disso, conosco elas não têm de dar motivos para a realização do aborto e sabem que não vão encontrar nenhum tipo de julgamento.”

A manutenção desse trabalho de acompanhamento de aborto feito sem passar por meios oficiais, porém, colocou as socorristas na mira da Justiça. Em dezembro de 2022, duas acompanhantes foram presas na província de Córdoba, acusadas de exercício ilegal da medicina.

Elas respondem em liberdade depois que ativistas iniciaram uma campanha para que fossem libertadas. Para a advogada colombiana Cristina Rosero, do Center for Reproductive Rights, a criminalização de acompanhantes em países onde o procedimento é legal é um contrassenso. “Especialmente porque agora o entendimento é de que o direito penal não é a melhor maneira de regular o aborto”, afirma ela —a Colômbia também descriminalizou o aborto em fevereiro de 2022, por meio de uma decisão da Suprema Corte. “Se há essa premissa na discussão pública, não faz sentido que uma pessoa que provê informação, que faz uma tarefa de acompanhamento, seja perseguida.”

Para Rosero, a descriminalização não acaba com a necessidade do trabalho das socorristas, que passa a ser uma tarefa de disseminar informação e até de fornecer apoio emocional. “Mesmo com uma boa lei, a implementação pode demorar, e às vezes os órgãos de saúde não têm interesse em cumprir com as suas obrigações. Até que o sistema de saúde responda melhor às mulheres, estas redes serão vitais.”

No México, a socorrista Verónica Sánchez afirma que, depois da descriminalização nacional do aborto pela Suprema Corte em 2021, o trabalho também mudou de foco. Fundadora da Las Libres, rede de acompanhamento de aborto fundada em 2000 na cidade de Guanajuato, ela diz que a maior parte do trabalho agora se voltou para o lado de cima da fronteira —os EUA.

“Começamos com uma iniciativa para apoiar mulheres do Texas que precisaram de aborto, porque foi o primeiro estado com restrições”, conta ela. Em 2021, entrou em vigor no Texas a Lei do Batimento Cardíaco, banindo abortos depois das seis semanas de gestação.

Pouco depois que as mexicanas comemoraram a vitória na Justiça local, ativistas dos EUA sofreram uma derrota: em junho de 2022, a Suprema Corte americana reverteu o entendimento que por quase 50 anos estabeleceu o aborto como direito constitucional.

“Formamos redes de apoio em todos os estados restritivos dos EUA e passamos a fornecer apoio também para outros países da América Latina”, diz Sánchez.

Atualmente, 14 estados americanos banem a interrupção voluntária da gravidez em todos os casos. É para estes lugares que está voltada a atenção da Las Libres, que tem um site em inglês com instruções para o uso das pílulas abortivas dependendo da idade gestacional e formas de proteção de dados para evitar rastreamento de autoridades.

“No México o acesso aos medicamentos é bem mais fácil, podemos comprá-lo em farmácias e enviar. Isso faz com que sejamos, hoje, a melhor opção para essas mulheres, porque, além de tudo, nós fazemos gratuitamente o que nos EUA custa centenas de dólares.”

A ativista diz que não ocorreram casos de criminalização como a das argentinas porque a rede que se formou entre EUA e México se baseia na confidencialidade: “Temos uma responsabilidade muito grande de proteger a identidade das nossas colaboradoras”.

ANGELA BOLDRINI / Folhapress

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