NOVO AIRÃO, AM (FOLHAPRESS) – Na borda de um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo, famílias ribeirinhas inteiras se mudaram para dentro de canoas para ficarem mais perto de água.
A seca extrema nesse ponto da Amazônia, que deixou o rio Negro num nível nunca visto na história recente, vem produzindo deslocamentos forçados e modos de vida e habitação inimagináveis para um lugar tão úmido e tão marcado por cursos dágua em tempos normais.
O arquipélago fluvial de Anavilhanas, entre Manaus e Novo Airão (AM), tem mais de 400 ilhas e 60 lagos, no curso do rio Negro. Segundo técnicos do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que administra o Parque Nacional de Anavilhanas, é o segundo maior arquipélago do tipo no mundo.
A seca histórica provoca impactos diretos no arquipélago. Produz mais ilhas e bancos de areia, drena a água, altera a paisagem, faz desaparecerem igarapés e isola comunidades ribeirinhas. São 54 em torno do parque, vivendo principalmente da pesca de subsistência no arquipélago.
A Folha de S.Paulo esteve no arquipélago nesta terça-feira (17) e constatou que, além de todos esses efeitos, a estiagem extrema vem provocando deslocamentos de famílias em direção à água.
Grandes canoas ancoradas em bancos de areia viraram casas, um modo de vida que já dura meses para algumas famílias e que deve durar até dezembro, segundo a previsão dos próprios ribeirinhos.
As canoas-casas estão a uma hora de barco de Novo Airão. A reportagem encontrou oito famílias vivendo dessa forma.
“Eu nunca morei assim, em canoa”, afirma Carlos Alberto da Silva, 53, um dos moradores de uma das embarcações. “Essa é a pior seca. Antes a água entrava até perto da comunidade.”
As famílias que se mudaram para os barcos de madeira, cobertos com uma estrutura com lona, são da comunidade Renascer, que está a mais de quatro quilômetros em linha reta do banco de areia que virou o novo endereço dos ribeirinhos.
A comunidade ficou isolada com a descida do rio. É alcançada por pequenas embarcações, mas em percursos que duram horas. Os moradores ficaram sem acesso a água e sem boas condições para o deslocamento para a pesca de jaraqui e tucunaré.
Por isso, a solução encontrada foi se mudarem para canoas encalhadas em bancos de areia na borda do arquipélago fluvial de Anavilhanas.
As famílias que têm casas mais distantes na comunidade e, portanto, mais isoladas, desde o momento zero da estiagem prolongada estão há mais tempo nas canoas, há mais de dois meses.
O pescador Carlos Silva está há um mês com a família na canoa que virou sua casa. Ele, a mulher, um enteado, a esposa e três crianças dormem em redes na canoa.
A água que consomem é potável, fruto de uma doação. Mas nem sempre foi assim. Antes eles consumiam a água do próprio rio Negro, sem filtragem ou tratamento. Como a água potável está acabando, os galões devem ser reabastecidos novamente no Negro.
“A gente só vai em casa para pegar farinha, quando está acabando, vasilhas e cuidar das galinhas e dos cachorros”, diz Silva. “A volta para lá é só quando o rio encher. Isso deve ser fim de novembro, começo de dezembro.”
Em outras secas, a família improvisou um barraco na boca do canal que conduz à comunidade. Desta vez, o rio desceu tanto que foi necessário transformar canoas em casa, para proximidade ao curso dágua.
Uma filha de Silva vive em outra canoa, distante 20 minutos de caminhada pelo banco de areia que surgiu. A embarcação que ela ocupa é ladeada por outras três canoas-casas.
Na terça, a filha de Silva foi até a comunidade para uma recarga no celular. Nesta quarta (18), estava previsto um novo deslocamento, até Novo Airão, para recebimento do Bolsa Família por isso há a necessidade do celular carregado.
O deslocamento até a comunidade, feito uma ou duas vezes ao mês, exige quase um dia inteiro dos ribeirinhos. Eles saem cedo, por volta das 8h, e chegam de volta às canoas por volta das 15h.
“Em casa, tinha água limpa até ali perto. Mas tenho medo de que alguém adoeça lá e a gente não conseguir sair”, afirma Silva.
Plaquinhas de energia solar, doadas à família de Silva, garantem um ponto de luz na canoa. As crianças fazem tarefas escolares entregues por um barqueiro que as recolhe na escola na comunidade.
A seca impacta pequenas e grandes comunidades ribeirinhas que vivem da simbiose com o arquipélago. É o caso da comunidade Sobrado, que fica a 40 minutos de barco de Novo Airão, entre a cidade e os bancos de areia onde estão as canoas usadas como casas.
O igarapé aos fundos secou, e há moradores vivendo a uma distância de mais de cinco quilômetros do ponto central da comunidade. O rio Negro, à frente, já não oferece condições de banho.
Famílias recorrem a cacimbas para tentar extrair água com mínimas condições de uso. Essas cacimbas são estruturas de madeira em forma de quadrado próximas a olhos dágua, de forma a represar a água e barrar sedimentos.
Boa parte de Sobrado, onde vivem 129 famílias, é servida com um poço artesiano. Mas já começa a faltar água no poço.
“Quem mora em igarapé usa cacimba todo ano. Nem todo mundo tem poço, e tem mais gente usando cacimba na seca deste ano”, diz Aldeni Teixeira da Silva, 38, integrante da Associação dos Produtores Agrícolas da Comunidade do Sobrado e guia de turismo.
“Nunca teve seca como esta. Apareceu uma praia no meio do rio que nunca aparecia. O que era canal virou praia. A gente nunca imaginava isso”, afirma Teixeira.
O que resta de água no igarapé está impróprio para uso. São poças de água parada, carregada de sedimentos, com peixes em decomposição, fétida.
A seca impacta a rotina no Parque Nacional de Anavilhanas. Passaram a ser mais frequentes atividades ilegais como pesca esportiva e caça de quelônios, em razão da maior facilidade de captura desses animais.
“Todas as comunidades estão com dificuldade de acesso a água potável”, afirma Enrique Salazar, analista ambiental do ICMBio em Anavilhanas. “Quem tem poço está com água barrenta.”
Novo Airão está a 200 km do centro de Manaus. As duas cidades são banhadas pelo rio Negro. Na última segunda-feira (16), um recorde foi batido: o rio atingiu seu nível mais baixo na capital, 13,59 m, em 120 anos de medição pelo Porto de Manaus. E o rio segue vazando, uma mostra do prolongamento da seca. Nesta quarta, a medição apontava um nível de 13,38 m.
A estiagem extrema, mais duradoura e sem previsibilidade, vai prolongar a permanência da família de Silva e de outras famílias nas canoas ancoradas em bancos de areia na borda de Anavilhanas.
Jean, 14, um dos filhos de Silva, é um dos moradores da canoa. Ele passa os dias nos bancos de areia.
“Você prefere morar na comunidade ou aqui na praia, na canoa?”, pergunta o repórter.
“Aqui”, ele responde.
“Por quê?”
“Porque lá é triste”, diz o adolescente.
“E por que é triste?”
“Porque não tem ninguém.”
VINICIUS SASSINE E LALO DE ALMEIDA / Folhapress