RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em 2023, o mercado brasileiro de maconha medicinal movimentou cerca de R$ 700 milhões, segundo estimativa da consultoria especializada Kaya Mind, que vê a marca de R$ 1 bilhão já bem próxima.
É um segmento crescente e altamente dependente de importações, já que o cultivo da planta hoje só é autorizado a poucas associações de apoio aos pacientes que obtiveram decisões judiciais favoráveis.
Os 16 estados que decidiram distribuir gratuitamente medicamentos produzidos com derivados da cannabis gastaram em 2023 cerca de R$ 80 milhões em importações. E o valor tende a subir, já que há hoje projetos de lei sobre o tema em outras nove unidades da federação.
O potencial econômico da planta, cientificamente conhecida como cânabis, entrou no radar da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), que planeja um grande projeto de pesquisa sobre seu cultivo.
“Estamos no país em uma situação de quase completa dependência externa”, diz a pesquisadora da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Clima Temperado, Beatriz Emygdio, que coordena um comitê formado para pesquisar o tema.
“As pessoas podem usar, mas não pode haver o cultivo. Hoje os mais de 430 mil usuários da cânabis medicinais dependem de produtos importados a custo altíssimo”, prossegue ela.
No fim de julho, a Embrapa pediu à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorização para começar o plantio. No início de outubro, apresentou à agência seu plano de pesquisa, que envolve quatro etapas em um período de até 12 anos.
O programa mira não só o uso medicinal, mas também aplicações industriais da planta, que tem grande potencial para a produção de fibras e óleos vegetais, com uso em diferentes segmentos, como têxteis cosméticos e até combustíveis.
Reconhecida pelo desenvolvimento de culturas importantes para a agroindústria brasileira, como o eucalipto e a cana-de-açúcar, a Embrapa quer usar essa expertise para fomentar um agronegócio da cânabis, hoje já plantada em larga escala na China, nos Estados Unidos e em países europeus.
A Embrapa elaborou um plano com quatro grandes grupos de pesquisa. O primeiro lidará com os cultivares, com o desenvolvimento de variedades adaptadas às características do país, já que a planta é altamente influenciada pela temperatura, diz Emygdio.
O segundo é voltado às práticas de manejo, pesquisando questões como uso de água, semeadura, arranjo de plantas para cultivo, métodos de clonagem, controle de pragas e doenças e sistemas de produção com rotação de cultura.
O terceiro trata de técnicas de colheita, secagem, extração de fitocanabinóides, potencial de uso de coprodutos e de resíduos como bioinsumos. “Não só de extração medicinal, mas das folhas para controle de plantas indesejadas, insetos, até do mosquito da dengue já tem estudos demonstrando eficácia”, diz ela.
Por fim, a pesquisa envolverá o estudo de políticas públicas, com foco na identificação das pegadas da cultura e das melhores regiões para plantio no Brasil. “Com base nesses resultados a gente pretende auxiliar no avanço dos marcos legais e regulatórios que estão sendo discutidos no país”, diz a pesquisadora.
A proposta tem maior foco no uso medicinal, mas visa também estudar subespécies de cânabis com menores teores de THC ou CBD, mais usados para aplicações em outras indústrias, que o setor prefere chamar de cânhamo industrial.
Elas têm elevado potencial para a produção de fibras têxteis e óleos vegetais, além de propriedades regenerativas do solo e elevada captura de dióxido de carbono -e praticamente sem o THC, que causa os efeitos alucinógenos, que levaram à proibição da planta em grande parte do mundo.
São maiores do que as outras (podem chegar a quatro metros de altura) hoje com cultivo já permitido ao redor do mundo: segundo a ONU (Organização das Nações Unidades) cerca de 60 países relataram exportações de produtos de cânhamo industrial entre 2019 e 2022.
Neste último ano, o fluxo comercial de fibras e fios da planta somou US$ 213 milhões (R$ 1,2 bilhão), valor considerado subestimado pela própria organização. Apenas as sementes de óleo de cânhamo, diz, movimentaram US$ 112 milhões (R$ 600 milhões).
A Kaya Mind estima que a liberação o cultivo para fins industriais pode gerar mais de R$ 300 milhões em impostos no quarto ano após as primeiras colheitas.
PRINCIPAIS USOS POR PARTE DA PLANTA
– Flor: óleos para compostos medicinais, perfumes, cremes, alimentos e bebidas alcoólicas, entre outros
– Sementes: óleos para lubrificantes, tinta, azeite, cosméticos e biocombustível; farelo para alimentação animal; e grão para pão, granola, leite vegetal e outros
– Caule: fibras concreto, adubo, absorvente químico, painel para isolamento, cordoaria, indústria têxtil e calçadista, entre outros; caule para biocombustível, papel e filtro
– Folha: adubos
“É uma planta de ciclo curto, com imenso potencial de regeneração do solo. Comparado ao eucalipto, o cânhamo pode ser cultivado em poucos meses, oferecendo uma solução sustentável para várias indústrias”, diz o presidente da ABCI (Associação Brasileira da Cânabis e do Cânhamo Industrial), Luís Maurício.
A Kaya diz que o cânhamo produz quatro vezes mais papel por hectare plantado do que o eucalipto, com um ciclo de cultivo menor -100 a 140 dias contra 6 a 7 anos do eucalipto. A importação e cultivo de sementes dessa espécie foi autorizado nesta quinta-feira (13) pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).
A ideia da Embrapa é que o programa de pesquisa seja feito em parcerias entre as diversas unidades da Embrapa pelo país, diz Emygdio. A Embrapa Algodão, na Paraíba, ficaria com foco nas fibras, enquanto a Embrapa Clima Temperado, no Rio Grande do Sul, vê o melhoramento da capacidade medicinal.
A adaptação das espécies, normalmente produzidas em climas temperados, ao Brasil é outro desafio nesse projeto. O perfil mais conservador do Congresso é outro um desafio para a autorização do plantio, embora especialistas vejam menor resistência à liberação do cânhamo industrial.
“O Brasil precisa encarar essa pauta com seriedade e deixar de lado os estigmas e preconceitos”, diz Luis Maurício. “A China, que é um país proibicionista, é o maior exportador de cânhamo do mundo. O Brasil, com suas condições climáticas e agrícolas favoráveis, poderia ser o principal produtor mundial.”
Um avanço nesse sentido, porém, ainda não resolve a questão do uso medicinal, que depende de autorização para o plantio de espécies com maior teor de THC para reduzir a dependência de importações.
“O Brasil não pode repetir a escravidão e ser o último país a regulamentar a cânabis”, disse Marcos Langenbach, diretor da Apepi, associação de apoio à pesquisa e pacientes de maconha medicinal, que obteve na Justiça o direito de plantar e produzir medicamentos.
NICOLA PAMPLONA / Folhapress