SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Carbonext, empresa que se apresenta como a maior geradora de créditos de carbono no país a partir da proteção da Amazônia, abandonou uma parceria com os kayapós mebengôkres, da Terra Indígena Kayapó, após promessas de “milhões de reais” aos indígenas, de antecipação de pagamentos e de desenvolvimento de um projeto que seria um “plano de vida”.
O MPF (Ministério Público Federal) no Pará, por meio de procedimento preliminar, começou a acompanhar em janeiro as tratativas da empresa com os kayapós do território tradicional, que fica no sul do estado.
A Terra Indígena Kayapó é a que possui mais garimpos no Brasil, levando-se em conta a extensão das áreas abertas para a exploração ilegal de ouro num território demarcado.
Entre a primeira reunião com lideranças indígenas e a assinatura de um contrato para projeto de geração e venda de créditos de carbono, foram menos de três meses.
Nesse intervalo, representantes da Carbonext fizeram diversas promessas aos kayapós, com citações a “recursos volumosos para a comunidade” e a um projeto pensado para contemplar “filhos e netos”.
O procedimento preliminar do MPF passou a investigar suspeitas de atropelamento de instâncias; ausência de consulta livre e prévia; risco de dolo e lesão aos indígenas; e “suspeitas de açodamento e desprezo pelas instituições indígenas”.
O compromisso foi assinado em 30 de janeiro. Em 22 de março, a empresa recuou formalmente da parceria, com a assinatura de um distrato com parte das lideranças envolvidas no processo.
À Folha de S.Paulo, a Carbonext disse ter reformulado as etapas para o desenvolvimento de projetos após a experiência com os kayapós. O protocolo de consulta pública passou da etapa final para a inicial.
“A Carbonext segue os mais rígidos padrões internacionais de governança e compliance e tem absoluta segurança em afirmar que sempre conduziu todas as tratativas com representantes de comunidades indígenas com absoluta transparência e respeito”, afirmou, em nota.
“A empresa tem por regra de compliance sempre notificar as autoridades sobre os projetos com povos originários e convidá-las a participar das reuniões”, disse. O MPF foi convidado a participar das reuniões, e a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e a Defensoria Pública acompanharam os encontros, conforme a empresa.
O abandono do projeto frustrou parte das lideranças indígenas e aprofundou divergências internas. Os kayapós têm representações múltiplas, e são comuns as discordâncias, especialmente entre quem apoia e quem não apoia o garimpo ilegal.
Associações enxergavam no crédito de carbono uma saída para abandonar o apoio a garimpeiros. Esse apoio é dado por grupos minoritários de indígenas em pelo menos 5 das 55 aldeias, entre elas a aldeia-mãe, Gorotire.
A reportagem da Folha esteve em abril na Terra Indígena Kayapó, tanto em Gorotire, a 52 km de Cumaru do Norte (PA), quanto em Turedjam, a 20 km de Ourilândia do Norte (PA). As duas aldeias estão cercadas por garimpos ilegais, que chegaram muito próximos das comunidades. A entrada de escavadeiras e caminhões só ocorre mediante pagamento de taxas a grupos de indígenas.
A reportagem sobre o cerco dos garimpos aos kayapós foi publicada no último dia 16.
Nas duas aldeias, caciques e lideranças manifestaram esperança com o projeto de crédito de carbono com a Carbonext. Eles relataram que consultas estavam em curso em outras comunidades, para validação da iniciativa. Trataram da parceria como se ela ainda existisse o distrato já havia ocorrido há quase um mês.
Os créditos de carbono são gerados a partir de atividades que evitam desmatamento e degradação da floresta. O instrumento que permite isso é o REDD+, desenvolvido no âmbito da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima.
Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida para a atmosfera em razão do desmatamento que foi evitado. Empresas como a Carbonext atuam no mercado voluntário, em que créditos de carbono são vendidos a empresas que precisam compensar suas próprias emissões de gases de efeito estufa.
A Carbonext passou a buscar o desenvolvimento de projetos em terras indígenas, mesmo sem existir ainda uma regulamentação no país.
O governo Lula (PT) prepara uma regulação do mercado de crédito de carbono, proposta que já existe em projetos em tramitação no Congresso, e quer criar um sistema de mensuração nacional para emitir seus próprios certificados de carbono, a cargo hoje de entidades estrangeiras.
Ao explicar o projeto para os kayapós, a Carbonext disse que mantinha projetos com outros cinco povos indígenas: paiter suruís, em Rondônia; cintas largas e araras do Rio Branco, em Mato Grosso; mundurukus da Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Amazonas; e tembés da Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Pará.
“Atualmente, a Carbonext não tem contrato com nenhuma comunidade indígena. A empresa chegou a assinar contratos com essas cinco comunidades, mas todos foram distratados em comum acordo entre as partes a partir do entendimento de que era preciso ter maior segurança jurídica para desenvolver o projeto pelos próximos 30 anos”, disse a empresa em nota.
A Folha teve acesso às atas das reuniões entre representantes da Carbonext e lideranças da Terra Indígena Kayapó.
Conforme os documentos, a primeira reunião ocorreu em 9 de novembro de 2022, por videoconferência. Depois, representantes de associações dos kayapós foram levados a São Paulo para uma reunião em 6 de dezembro.
Um integrante da Carbonext disse que o crédito de carbono dos indígenas tem potencial para ser comercializado por até US$ 20 (cerca de R$ 95) e que hoje esse crédito é comercializado por US$ 15 (R$ 71). Esse valor, porém, poderia atingir US$ 85 nos próximos anos, segundo o relato.
“O projeto pode chegar a gerar milhões de reais para os indígenas por ano, pelo tamanho e pressão de desmatamento”, disse a Carbonext na reunião. De acordo com a explicação dada, cada hectare produz, em média, 400 toneladas de créditos de carbono um crédito corresponde a uma tonelada.
Depois, em 21 e 22 de janeiro, houve reunião presencial na aldeia Kriny, na terra Kayapó. Várias lideranças estavam presentes, com sete associações representadas. Havia no local um servidor da Funai e um integrante da Defensoria Pública do Pará.
Mais uma vez, um integrante da Carbonext detalhou promessas. “A proposta do projeto de crédito de carbono é de parceria de 30 anos, muito longo. Um projeto que se pensa para filhos e netos. Eu acredito que pode ser um momento de mudança para a comunidade, que pode realizar seu plano de vida, fazer o que sempre quis e não tinha recurso para realizar”, disse representante da empresa.
A Carbonext afirmou também que já havia conversado com empresas interessadas na compra antecipada de créditos.
Pela proposta, os indígenas ficariam com 70% do valor, e a Carbonext, com 30%. Em 30 de janeiro, pouco mais de uma semana depois, foi assinado o termo de compromisso.
A empresa admitiu ao MPF que os kayapós ainda não têm um protocolo de consulta formalmente estabelecido. Por isso, poderia haver questionamentos sobre os procedimentos que antecederam a assinatura do contrato e “comprometimento da segurança jurídica do projeto no futuro”.
Carbonext e lideranças indígenas assinaram o distrato em 22 de março. A ruptura foi comunicada ao MPF no mês seguinte. Diante disso, a Procuradoria da República em Redenção (PA) arquivou o procedimento preliminar de investigação.
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
VINICIUS SASSINE / Folhapress