SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O uso dos resíduos como recurso é o coração de quatro iniciativas que nasceram nas últimas duas décadas e que batalham para mudar comportamentos e desbravar mercados no Brasil.
Das tecnologias mais simples, como a compostagem ao ar livre, a mecanismos de compensação de carbono, essas empresas usam Soluções Baseadas na Natureza (SbN) e fazem parte da economia verde no país. As SbN auxiliam a mitigar as mudanças do clima e a adaptação aos seus impactos, aumentando a resiliência das cidades.
Segundo o IBGE, em 2023, havia 2,3 milhões de trabalhadores na economia verde do país. De acordo com o Plano de Transformação Ecológica do governo federal, o setor pode gerar um aumento de 2,2% do PIB e uma receita de até R$120 bilhões até 2030.
São consideradas verdes as iniciativas de energias renováveis para descarbonizar a economia e reduzir emissões poluentes, de otimização da utilização dos produtos através do ecodesign, de redução no uso de matérias-primas, sua reutilização e reciclagem.
As experiências de uso de resíduos como recursos, abaixo, colocam em prática a circularidade na economia e colaboram para a mitigação da crise do clima.
“TROPICALIZAÇÃO” TECNOLÓGICA GERA GÁS E ADUBO NA 1ª UNIDADE DE BIOMETANIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA
Resíduos orgânicos urbanos da cidade do Rio de Janeiro estão virando gás e adubo graças à primeira unidade de biometanização da América Latina. Biometanização é um conjunto de processos em que microorganismos degradam a matéria orgânica na ausência de oxigênio.
Em comparação à incineração e aos aterros sanitários, o processo é o que gera mais produtos utilizáveis. Outra vantagem é que, ao aplicar o composto na agricultura, o solo passa a estocar carbono.
O projeto começou a funcionar em dezembro de 2018 em uma área de cerca de 1.800 m2, na maior estação de transferência da Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), localizada no Caju, na zona norte da capital fluminense.
O processo é de digestão anaerobia seca, consolidado na Europa. O que se faz na unidade do Rio é uma “tropicalização da tecnologia”, ou seja, uma adaptação às condições locais.
Não existem outras usinas do mesmo tipo alimentadas por resíduos orgânicos urbanos no Brasil, segundo o engenheiro ambiental Bernardo Ornelas, coordenador de projetos na Comlurb. Ornelas fez mestrado e doutorado em Saneamento pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o projeto da usina é fruto de uma cooperação técnica da UFMG com a Empresa Methanum e a Comlurb.
A unidade recebe restos de alimentos de supermercados, restaurantes e escolas e mistura esses resíduos com podas de árvores, fonte essencial de carbono. A mistura é colocada em módulos que ficam lacrados por até três semanas. O processo rende 70 m3 normais de biogás por tonelada de resíduo.
A partir da combustão desse biogás, é produzida energia elétrica que move todo o tratamento. São geradas mais de 300 toneladas de composto por ano. O composto é doado a programas de reflorestamento, como o da Floresta Tropical Urbana da Tijuca, e de agricultura urbana, como o programa Hortas Cariocas, financiado pela ONU.
O processo trata de 3.600 toneladas de resíduos por ano, pouco menos de 1% da parte orgânica do lixo do Rio, estimada em 40 mil toneladas por ano. Por dia, são cerca de 10 toneladas. A capacidade de processamento é modesta diante da necessidade da cidade, mas seria suficiente para tratar resíduos de um município de até 20 mil habitantes. Ainda assim, os resultados são considerados promissores para criar parâmetros de ampliação da reciclagem de orgânicos.
Neste ano, a unidade conseguiu US$ 300 mil do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Global Methane Hub, um programa de redução de metano, para estudar a expansão dessa capacidade. A expectativa é aumentá-la em dez vezes.
A unidade faz parte do Plano de Ação Climática 2030 do município. “Estamos buscando conciliar saneamento, gerenciamento de resíduos e combate à crise do clima”, diz Ornelas. O Plano prevê desviar 80% de restos de alimentos de grandes geradores (como supermercados e restaurantes) para compostagem e biodigestão.
GESTÃO, DESTINAÇÃO E COMPENSAÇÃO PARA EMPRESAS E EVENTOS
O que o Rally dos Sertões e o festival de música C6 têm em comum? Além de reunirem muita gente e gerarem muitos resíduos, esses eventos temporários contrataram a empresa Eccaplan para diminuir e compensar suas pegadas ambientais. A empresa dá consultoria, faz triagem e coleta seletiva, compostagem e reciclagem, cálculos de emissões, relatórios e sistema de compensação de carbono.
No ano passado, a Eccaplan compostou mais de 200 toneladas de resíduos orgânicos de clientes e parceiros. “Só em 2023, fizemos ações ambientais em cerca de 300 eventos e lançamos o selo “Evento Neutro”, de quantificação de compensação de carbono”, conta o engenheiro Fernando Beltrame, CEO da Eccaplan, que coordena também o Grupo de Trabalho de Meio Ambiente da ONG Rede Nossa São Paulo.
A startup, que se autodefine como uma greentech, foi fundada em 2008 com apoio da Universidade de São Paulo (USP) e do Ministério da Ciência e Tecnologia. Entre seus clientes estão clubes, que são considerados grandes geradores de resíduos (mais de 200 litros diários) e têm obrigação, pela legislação local, de providenciar a destinação correta desse material.
“Nos últimos três anos, fizemos mais compensação de carbono do que nos outros 12, 13 anos de Eccaplan”, diz. Em 2022, a empresa lançou a plataforma de registro e negociação de créditos de carbono Carbon Fair Standard. É possível fazer simulações, ver a emissão gerada e saber qual a compensação possível com a compra do crédito de carbono. Em agosto de 2023, a startup lançou também uma calculadora de CO2.
O C6 Fest, que reuniu cerca de 60 mil pessoas em maio em São Paulo, teve serviço completo. A Eccaplan convidou os fornecedores para um treinamento sobre ESG, mobilizou catadores e contabilizou emissões. No Rally dos Sertões, em 2023, a empresa montou hortas pedagógicas e trabalhou com cooperativas de catadores em algumas das cidades do percurso. “Colocamos central de triagem, de separação dos materiais, na entrada de eventos, para que todo mundo visse esse trabalho”, conta Beltrame. “A parte educativa é muito importante.”
UMA CAIXINHA MÁGICA AJUDA O HOSPITAL A SER MAIS SAUDÁVEL
Em maio de 2022, um hospital municipal que atende as cidades de Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra e Mauá, na Grande São Paulo, começou a compostar restos de refeições em uma caixa metálica de 1,4 m². No fim do mesmo ano, conquistou o Prêmio de Amigo do Meio Ambiente (PAMA), concedido pela Secretaria de Estado da Saúde de SP.
Em dois anos de compostagem, o hospital deixou de encaminhar mais de 18 toneladas de sobras orgânicas ao aterro sanitário. “Começar pequeno foi uma grande dica”, conta Eliesse Silva, presidente da Comissão de Gerenciamento de Resíduos do Hospital de Clínicas Dr. Radamés Nardini desde 2017. O hospital tem 231 leitos e 1.044 funcionários, e ocupa uma área de 6.000 m2.
A orientação veio de Germano Gunther, professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) no Centro de Ciências Agroveterinárias (Cav) em Lages (SC). Criador do Método Lages de Compostagem, ele adaptou o sistema para o hospital.
Originalmente, a compostagem Lages é feita junto com o cultivo de alimentos, em hortas. “Como estamos num ambiente hospitalar, que tem de ser totalmente controlado, precisávamos de algo com maior segurança”, conta Elisse. A equipe de manutenção do hospital construiu uma caixa metálica revestida de tela de metal e de sombrite.
A cada 30 dias, o conteúdo é revolvido e colocado sobre os canteiros de uma horta onde são cultivadas plantas medicinais e aromáticas, usadas no preparo de chás, e verduras que são doadas aos funcionários.
O sucesso da iniciativa motivou a construção de uma segunda caixa. “Os funcionários e visitantes ficam surpresos que em um espacinho tão pequeno seja possível fazer tamanha transformação. Costumo dizer que é uma caixinha mágica. Você coloca sobra e retira adubo”, conta Eliesse.
Três hospitais se interessaram pela experiência e estão estruturando suas composteiras, conta Eliesse. A prática é incentivada pelo Projeto Hospitais Saudáveis (PHS), que representa a Health Care Without Harm (Saúde sem Dano) e a Rede Global Hospitais Verdes e Saudáveis (Global Green Health Hospitals) no Brasil.
“O serviço de saúde também polui, é um grande consumidor de recursos naturais e um grande gerador de resíduos. Ele cuida das pessoas, mas também precisa cuidar do meio ambiente, porque está tudo conectado”, afirma Elisse.
DELIVERY DE COMPOSTAGEM
A Planta Feliz presta serviço para quem quer dar um final ecologicamente correto aos restos orgânicos de sua casa ou da empresa, mas não tem espaço ou condição de fazer isso sozinho.
Pioneira na cidade de São Paulo, faz coleta e compostagem para clientes. O assinante recebe sacos compostáveis e entrega esses recipientes cheios a um portador. As coletas são levadas ao sítio da empresa perto de Parelheiros, no cinturão verde de São Paulo. O método utilizado é o aerobio (com a presença de ar) termofílico e entram todos os tipos de resíduos orgânicos, incluindo carnes.
Mensalmente, chegam ao sítio 7,5 toneladas de resíduos que, em 30 dias, vão virar 2 toneladas de composto. Parte desse adubo é vendido com desconto de 25% aos assinantes e parte é comercializada no Instituto Chão, no Instituto Feira Livre, pelo site e pelo Instagram da empresa.
A Planta Feliz tem 200 clientes pessoas físicas, que enviam cerca de 5 kg por coleta, e em torno de 30 empresas, como escolas, cafeterias e pequenos negócios. O maior cliente é a unidade Interlagos do Sesc de São Paulo, que envia 1,5 tonelada mensal de resíduos.
A Planta Feliz emite o Manifesto de Transbordo de Resíduos (MTR) e um certificado de destinação final, documentos que atestam as quantidades de resíduos deslocadas no município.
Segundo Marina Sierra de Camargo, sócia fundadora da Planta Feliz, há dois entraves para o desenvolvimento de empresas como a dela atualmente: legislações ultrapassadas e a concorrência indireta dos aterros sanitários, que são subsidiados pelos municípios.
MARA GAMA / Folhapress