SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Todo filme de desastre começa com cientista sendo ignorado”, diz o meme recorrente na internet a cada nova tragédia climática. O exemplo, baseado em produções de Hollywood, pode parecer hiperbólico, mas é compatível com a falta de preparação que governos têm demonstrado para lidar com eventos climáticos extremos.
O caso das tempestades que devastam o Rio Grande do Sul não é diferente. Projeções elaboradas há anos previam exatamente um aumento das chuvas extremas e inundações na região com o avanço do aquecimento global –e, mesmo assim, a chegada de tanta água pegou o estado despreparado.
“Para a ciência, isso não é nenhuma novidade”, afirma o físico Paulo Artaxo, membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), vinculado à ONU, e pesquisador da USP.
“Há mais de 20 anos, todos os modelos climáticos mostram que, com o aumento da temperatura global, vai aumentar a quantidade de chuvas e secas muito intensas, ou seja, o clima vai ficar mais extremo. O relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas que fizemos há oito anos já previa chuvas mais extremas no Sul e secas na amazônia”, diz ele.
O planeta já aqueceu quase 1,3°C em relação ao período anterior à Revolução Industrial (1850-1900) –a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris é limitar o aquecimento global a 1,5°C. Com isso, as chuvas intensas já estão mais fortes e frequentes no Brasil, segundo relatório de 2021 do IPCC, a maior referência científica em clima do mundo.
Chuvas extremas, que aconteciam, em média, uma vez a cada dez anos em um clima sem influência humana, agora provavelmente ocorrem 1,3 vez nesse mesmo período. Caso as emissões de gases de efeito estufa pelas atividades humanas continuem crescendo e a temperatura global aumente 4°C, o índice poderá chegar a 2,7 vezes. No patamar atual de emissões, o mundo está na rota para aquecer de 2,4°C a 2,6°C.
“Em um cenário de aquecimento global, as previsões futuras para a região Sul são de aumento de 10% a 20% da chuva anual. Em praticamente todo o resto do Brasil –no Sudeste, Centro-Oeste, na amazônia e em grande parte do Nordeste– a previsão é de diminuição da chuva”, diz o climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia.
Um planeta mais quente reflete em mais concentração de chuvas e de secas extremas. Oceanos mais quentes geram mais evaporação de água, provocando mais chuva. E uma atmosfera mais quente consegue reter mais vapor d’água, sem que ele se condense -o que faz com que a umidade fique concentrada e ocasione eventos climáticos extremos.
“Numa atmosfera super carregada de vapor d’água, quando há as condições termodinâmicas para que essa carga se condense, toda essa carga adicional cai junta como chuva, aumentando a taxa de precipitação dramaticamente”, explica Artaxo.
“Se você tem a combinação dos dois, atmosfera e oceanos mais quentes, a quantidade de umidade que está retida no ar é muito maior. Inclusive essa relação temperatura-umidade não é linear, é exponencial, o que significa que, incremento relativamente pequeno de temperatura provoca um incremento muito maior na quantidade de vapor”, complementa o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador no Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).
Desde o ano passado, os oceanos vêm batendo recordes mensais de calor, o que se acentuou em 2024. Em fevereiro, o observatório climático europeu Copernicus mostrou que a temperatura média da superfície marinha foi a mais alta já registrada na história, chegando a 21,06°C.
O recorde anterior era de 20,98°C, registrado em agosto de 2023 –ano que ficou marcado como o mais quente dos últimos 125 mil.
“No começo de 2023, as previsões não indicavam que todos os recordes [de calor] seriam quebrados, muito menos que os oceanos bateriam recordes. Agora, mesmo com a chegada do [fenômeno climático] La Niña, estima-se que 2024 vai ser tão quente quanto o ano passado”, aponta Nobre. “E, como o calor continua alto nos oceanos, devemos esperar que os eventos extremos continuem muito fortes, o que é uma enorme preocupação.”
O calor extremo no mar é influenciado pelo El Niño, fenômeno que é caracterizado pelo aquecimento excessivo do Pacífico na região da linha do Equador e, no Brasil, causa mais chuvas no Sul e mais seca no Norte e Nordeste.
O El Niño, porém, já passou do seu pico e está enfraquecendo, o que gera dúvidas sobre a sua influência nas chuvas no desastre do Rio Grande do Sul.
“O vento na atmosfera durante anos do El Niño tem um certo comportamento, e esse comportamento já não está presente. Então, tecnicamente, nós estamos em um fenômeno de El Niño, porque a temperatura do mar está ainda acima do [limite de] 0,5°C [mais quente], mas a atmosfera parece que já esqueceu o El Niño”, diz Seluchi.
A massa de alta pressão atmosférica que está provocando o calor excessivo no Sudeste impede a passagem de frentes frias que vêm do Sul e da umidade que vem da amazônia, fazendo com que a chuva se concentre sobre a região.
O coordenador do Cemaden diz acreditar que, sem estudos específicos da chamada atribuição climática (ramo da ciência que pesquisa como acontecimentos têm relação ou não com o aquecimento global), não se pode afirmar categoricamente que o evento extremo em curso no Rio Grande do Sul só foi causado devido à crise do clima. No entanto, também ressalta que o cenário atual é condizente com as previsões.
“Este extremo se insere num cenário esperado decorrente das mudanças climáticas”, resume. “Nós tivemos aquele episódio do rio Taquari [em setembro de 2023] e agora este outro evento, em menos de um ano. É realmente uma alta frequência de extremos climáticos.”
Para Artaxo, o clima global já entrou em um novo patamar e, por isso, vemos secas, ondas de calor, chuvas e nevascas mais frequentes e mais intensas do que tínhamos até muito recentemente. E, sem cortes drásticos nas emissões de carbono, o cenário só vai piorar, frisa.
“Todo mundo fica abestalhado quando metade de um estado brasileiro fica sob a água, mas isso vai se repetir e vai se repetir de forma mais intensa”, afirma.
“Então precisamos fazer duas coisas: cortar emissões e aumentar muito fortemente o orçamento das defesas civis, multiplicando o orçamento desses órgãos por cinco, por dez. Desse modo, é possível ter toda a estrutura de resgate pronta antes de desastres acontecerem e salvar vidas.”
Para o pesquisador, é extremamente importante que o Brasil se adapte e melhore as ações integradas entre municípios, estados e governo federal.
“O clima já mudou, vai continuar mudando e impacta principalmente a população de baixa renda, então ele é um forte fator de concentração da renda”, destaca. “Hoje se improvisa e esse improviso causa muitas mortes adicionais e prejuízos para população de baixa renda, que não tem para onde ir.”
JÉSSICA MAES / Folhapress