KIEV, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – Em 23 de maio, quando as batalhas no nordeste da Ucrânia tinham voltado a se intensificar, um míssil russo atingiu a maior gráfica do país, na cidade de Kharkiv. Sete pessoas morreram no ataque e 21 ficaram feridas. Estima-se que cerca de 50 mil livros tenham sido destruídos, suas páginas chamuscadas se amontoando no chão da fábrica.
Uma semana depois, em 30 de maio, tinha início em Kiev a principal feira literária da Ucrânia, Arsenal do Livro. Seu nome faz referência ao local em que ela acontece, um complexo de fabricação e armazenamento de equipamentos bélicos construído no século 18 e transformado em museu após o fim da União Soviética.
A animação com a abertura do evento era visível nas ruas da capital, e para entrar era preciso enfrentar filas de cinco quarteirões. Iuliia Kozlovets, diretora da feira, afirma que cada dia da edição atraiu cerca de 10 mil pessoas, mesma média de público registrada antes do conflito.
Apesar do entusiasmo, a guerra ainda se fazia sentir no evento, que passou por uma série de adaptações para garantir a segurança de seus visitantes. Sua arquitetura foi repensada de modo a facilitar a chegada do público aos abrigos de emergência e o trânsito dos que perderam a mobilidade nas frentes de batalha.
Um esquadrão antibomba foi contratado, e um psicólogo especializado em traumas adicionado à equipe de médicos de plantão. Em um canto, uma seleção de obras destruídas no ataque à gráfica em Kharkiv era exibida.
Essas mudanças são pequenas diante da revolução pela qual a produção literária ucraniana vem passando desde o início da guerra. A começar pela matéria-prima dessa literatura -a língua.
O ucraniano é o idioma oficial da Ucrânia desde a sua independência, em 1991. Mas a maior parte da população é fluente em russo, consequência dos anos em que o território integrou a União Soviética, onde o ensino era mandatório. O russo se tornou sinônimo de letramento, e a produção literária no idioma dominava o mercado editorial da Ucrânia até pouco tempo atrás.
Responsável pela venda de direitos autorais da Vivat, uma das maiores editoras do país, Mariia Onichtchuk diz que a motivação das casas para imprimir suas obras em russo era acima de tudo econômica. A estratégia permitia que as editoras ucranianas abastecessem de uma só vez o mercado doméstico e o da Rússia, que tem o triplo da população.
Mas a onda de patriotismo provocada pela anexação ilegal da Crimeia pela Rússia, em 2014, também afetou o mercado editorial ucraniano, com editoras e leitores buscando uma literatura mais representativa da identidade nacional.
Um levantamento da Info Sapiens Internacional, especializada em pesquisas de opinião, aponta que, de 2018 a 2023, a porcentagem de ucranianos que preferiam ler na língua natal aumentou de 28% para 54%, enquanto os que priorizavam leituras em russo caiu de 28% para 10%.
A escritora Svitlana Taratorina conta que o início de sua carreira é reflexo desse período de mudanças. Seu primeiro romance, “Lazarus”, foi publicado depois de ganhar uma competição voltada à descoberta de novos autores.
Nascida na Crimeia, Taratorina só passou a escrever e falar em ucraniano no dia a dia quando se mudou para Kiev, aos 18 anos. “Escolhi ser ucraniana. Foi difícil abandonar completamente o idioma russo, mas foi a forma que encontrei de reivindicar minha identidade. Decidi só escrever em ucraniano porque queria que meus textos fizessem parte dessa cultura.”
Ambos os romances da autora são alegorias do imperialismo russo. Em “Lazarus”, uma versão de Kiev do início do século 20, habitada por seres fantásticos, tem sua existência ameaçada depois que humanos decidem impor sua cultura aos nativos. Já “Casa de Sal” trata de um povo cujas terras são arrasadas por uma catástrofe e tomadas por invasores, uma referência à anexação da Crimeia pelos russos.
Newsletter Tudo a Ler Receba no seu email uma seleção com lançamentos, clássicos e curiosidades literárias *** Em paralelo a esse desabrochar da literatura nacional, os livros russos foram encaixotados e levados para armazéns. De uma hora para outra, mesmo obras de autores ucranianos que escreveram em russo, como Nikolai Gógol e Mikhail Bulgákov, foram deixados de lado, sem falar de escritores canônicos como Fiódor Dostoiévski.
Uma reportagem do portal ucraniano Fact aponta que mais de 26 milhões de cópias de livros em russo foram excluídas das bibliotecas do país entre 2022 e 2023.
A guerra também aparece literalmente na produção contemporânea do país. “Muitas editoras têm buscado publicar antologias de poemas, que funcionam como respostas emocionais intensas e rápidas ao que está acontecendo”, diz Kozlovets, da Arsenal do Livro. “Provavelmente não é o momento para romances muito extensos. Mas poemas, contos, ensaios, tudo isso anda muito em voga.”
Dois dos livros mais comentados por profissionais do ramo se entrelaçam de forma trágica com a guerra.
Um deles é “Eu me Transformo”, diário do escritor Volodimir Vakulenko feito quando sua cidade foi invadida pela Rússia, em março de 2022. Menos de um mês depois, as forças entraram na casa do autor. Ele escondeu o livro no quintal antes de ser sequestrado e morto por paramilitares vestidos de preto.
Um ano depois, outra escritora, Victoria Amelina, foi à casa de Valulenko entrevistar sua família para um projeto de documentação de crimes de guerra. O pai dele contou a ela sobre o livro, e o encontraram enterrado sob uma cerejeira, sua páginas úmidas depois de tantos meses debaixo da terra.
O diário foi publicado, e a escritora participou de seu lançamento na edição de 2023 da Arsenal do Livro. Amelina morreu dias depois, quando a pizzaria em que jantava com dois autores convidados pela feira foi atingida por um bombardeio.
Kozlovets pretende seguir realizando a Arsenal do Livro, apesar de tudo. A feira reforça os laços de comunidade entre seus pares, segundo ela, e incita “uma certa alegria por ainda estarmos aqui, continuando a trabalhar”.
Permite ainda estabelecer outra comunicação, mais profunda, com países e culturas estrangeiras. “Não é como enviar notícias de jornal. Não são só fotografias grotescas de um bombardeio.”
CLARA BALBI / Folhapress