SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há cinco séculos, a Torre de Belém vigia o ir e vir das águas do Tejo pouco antes do rio virar mar na costa de Lisboa. O forte de pedras desbotadas e brasões nacionalistas testemunhou o desaguar da história quando caravelas portuguesas deixaram o porto para abrir caminhos no oceano e feridas incuráveis na África e nas Américas.
Ali, às margens do Tejo, o artista Ernesto Neto diz ter visto os espíritos dos navios que se lançaram ao Mar Tenebroso, como era conhecido o Atlântico. “Vi a boca do oceano, o abisso para o Atlântico”, diz a jornalistas, enquanto engole um pastel de nata.
Nem a doçura do creme cuidadosamente confeitado mitiga o desconforto dos brasileiros que dão de cara com o Padrão dos Descobrimentos, monumento em homenagem aos navegantes que, cruzada a linha do Equador, eram colonizadores. Muitas naus se tornaram navios de tráfico de escravos, ainda que esse tipo de embarcação não seja mencionada no Museu da Marinha, a poucos metros da torre.
O frescor da brisa do Atlântico que invade a baía divide a atmosfera com memórias dolorosas. Por isso, quando foi convidado a criar uma instalação no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, o MAAT, que disputa a atenção dos turistas no mesmo calçadão que a torre secular e o Padrão dos Descobrimentos, o artista já sabia o que fazer.
Um barco. Mas como? Costurando uma enorme estrutura de 45 metros colorida feita em crochê. “Meu Barco Tambor Terra” é como uma espécie de tenda monumental, que se sustenta pelo contrapeso de esferas penduradas em suas extremidades pelo teto que mais parecem gotas.
Se vivemos em uma sociedade desequilibrada, Neto trabalha com o equilíbrio, tática que diz ter aprendido com os camelôs e vendedores ambulantes, que ele considera seus mestres, nas praias cariocas. As tendas móveis que carregam mercadorias diversas ou os ombros que equilibram o mate de um lado, o suco de limão do outro, e alguns polvilhos por fios, fazem parte do trânsito caótico da cidade tropical. “No final do dia, eu vivo de fazer laços e encher bolsas. Com essa estratégia, posso criar muitas coisas”, diz.
No seu interior, a nave parece uma floresta imaginária. Instrumentos musicais presos na teia de crochê convidam quem passeia a tocá-los, enquanto o cheiro das ervas e especiarias que recheiam as bolsas pendentes inundam o ambiente.
A obra demorou dois anos para ser concluída. “O crochê funciona em espiral, começa de dentro e vai para fora. São nós e círculos que se expandem. Tudo no universo está em interação, é a simbiose total. Entrar e sair, respirar e inspirar, é tudo vivo e conectado”, diz o artista, que aprendeu a tricotar com a avó. “Se todos fizessem uma hora de crochê pela manhã, o mundo seria melhor. Precisa de concentração, conexão com você mesmo e tudo em volta. É mágico.”
A música e a dança são essenciais para ativar a obra. “A bateria representava para a Europa antiga o diabo. Mas batucar é limpar, é uma prece”, argumenta. Neto aprendeu o ritmo observando festas populares e cerimônias ritualísticas indígenas. “O batuque é algo muito forte para culturas africanas. Não é sobre culpa, é sobre propor um futuro.”
Se no mundo das artes os limites entre público e obra foram ultrapassados por nomes como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, Neto defende que a interação é um movimento natural ao brasileiro “pelas heranças culturais dos povos indígenas e africanos”. “Numa roda de samba uma galera toca, a outra batuca, todos cantam e dançam. Em cerimônias indígenas, têm uma fogueira no meio, uma galera dançando em volta, todo mundo junto.”
Foi a convivência com os povos indígenas que levou Neto a abdicar do poliéster e outros tecidos derivados do plástico, materiais que o artista usava quando ganhou reconhecimento mundial ao apresentar seu trabalho na Bienal de Veneza de 2001 onde fez enormes bolas perfumadas penderem do teto no pavilhão brasileiro.
Além da multidão de turistas nos bondinhos que serpenteiam para cima e para baixo, castelos medievais com desenhos árabes de quando ainda era al-Ushbuna e nas ruínas do que foi destruído pelo terremoto de 1755, Lisboa também é agitada por brasileiros que decidem fazer da cidade o seu lar fluxo em ascendência nos últimos anos que tem provocado a ira de grupos anti-imigração de Portugal.
Vídeos nas redes sociais de portugueses que hostilizam brasileiros não são incomuns. Alguns chegam a reclamar que suas crianças estão assistindo a muitos youtubers brasileiros e aprendem a falar o português “errado”. Em meio as hostilidades, o ministro das Finanças do país, Fernando Medina, afirmou que os brasileiros tem sido fundamentais para a economia de Portugal.
Em abril, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi criticado após defender a necessidade do país reparar seus crimes da escravidão e de liderar o processo de reparação às ex-colônias. “Aqui em Portugal as pessoas nem sabem direito o que aconteceu. Nas escolas não ensinam, e nas nossas escolas o ensinamento é suave”, defende Neto.
Para o artista, a história catastrófica continua a acontecer. “A polícia entra na favela [no Brasil] e faz um esculacho, mata gente e nada acontece. Invadem as terras indígenas, que já são poucas em relação ao que já foram, e nada acontece. A tragédia histórica não está só lá atrás, mas ta acontecendo hoje. Estamos perdendo tempo de não absorver as sabedorias indígena e africana”. Afinal, “Meu Barco Tambor Terra” não tem a pretensão de reparar a colonização violenta, mas de pensar um futuro melhor.
A repórter viajou a convite do MAAT
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress