‘Escola é a 1º experiência de crianças negras com racismo institucional’, diz secretária do MEC

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Enquanto o debate sobre uma revisão da Lei de Cotas nas universidades está parado no Congresso, o MEC (Ministério da Educação) planeja a implementação de ações afirmativas também na educação básica. Não em forma de reserva de vagas, como no ensino superior, mas sim de alocação de recursos para o combate às desigualdades.

A professora Zara Figueiredo, 52, lidera a discussão na pasta. Ela está à frente da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão), área que havia sido extinta no governo Jair Bolsonaro (PL) e foi recriada no atual governo Lula (PT).

Figueiredo é uma das duas secretárias negras no alto escalão do MEC, ao lado de Katia Schweickardt, que responde pela Secretaria de Educação Básica. Para ela, a escola ainda representa para crianças negras um primeiro contato com o racismo institucionalizado.

“As crianças estão todos os dias na escola, em coletivo, e isso faz com que escola seja o primeiro lugar de um racismo institucional. E o Estado não tem feito um movimento de lidar com isso”, diz.

Ela aponta que o Brasil fez um esforço nas últimas décadas para universalizar o ensino fundamental, mas, apesar disso, o país segue com desigualdades de aprendizado —meninos e meninas negras ainda apresentam piores dados de evasão, por exemplo.

“Os negros sempre foram os que mais reprovavam e evadiam. E, sem qualquer mal-estar, ninguém questionava porque exatamente só esse grupo evadia. Isso foi naturalizado porque não se questiona em momento nenhum que isso é a estruturalidade do racismo”, diz ela.

“Quando a gente começa a ter dados de aprendizagem, vê que o problema é muito mais grave e os negros não aprendem. E isso também está naturalizado.”

Segundo ela, a secretaria trabalha atualmente em um projeto de um censo da equidade. “Se você não sabe quem são e onde estão [quem mais necessita], até a política de formação de professor e a territorialização para determinados grupos fica comprometida”, diz.

Segundo ela, a ação afirmativa na educação básica deve considerar a proporcionalidade na distribuição dos bens. O Estado precisa, diz, fazer os esforços para essa distribuição.

Filha de pai lavrador e mãe merendeira, ambos analfabetos, Figueiredo conta que somente aos 28 anos saiu da sua cidade natal, no interior de Minas Gerais, para estudar ou mesmo ir ao cinema. Só então viu o mar.

“Foi tudo muito tardio. As pessoas brancas não fazem essa trajetória nesse tempo, isso não é casual. E eu não sou a única, um monte de gente como eu fez essa trajetória ou nem chegou a esse ponto. Essa é uma questão quando você é negra”, diz.

“E as experiências pelas quais as meninas, sobretudo as negras, passam são muito duras. Isso significa que abuso sexual está posto todo tempo, então você cresce nesse mundo”, completa.

“Fui salva pela escola, mas a escola também foi minha danação. Estudei numa escola que não era para mim. Então me chamavam de cabelo duro, Bombril, pixaim, isso é muito ruim para uma criança. O que me salvou foi que a minha mãe era merendeira da escola, então era um mal-estar maior você jogar a filha da merendeira fora também. Mas todas as minhas colegas a escola pública jogou fora. Quando volto à minha cidade, vejo minhas amigas de idade com uma vida bastante sofrida. Isso é resultado dessa escola pública que não conseguiu lidar com essa estruturalidade”.

Segundo ela, a escola também enfrenta algo comum na sociedade, que é a intersecção entre gênero e raça.

“A escola precisa ainda lidar com a questão racial”, diz ela, ressaltando que o combate passa pela formação de professores. “Relatos de creche das pesquisas etnográficas mostram que a forma como um professor reage a uma queda de um aluno branco e negro é muito diferente. A forma como você é repreendido é muito dura. Isso é muito institucionalizado”.

A secretária também chama a atenção para os estereótipos raciais dentro da escola com relação a aprendizado e disciplina. “Você clareia o aluno, escurece o aluno. Se uma aluna tira 9 ou 10 e você pergunta para a professora qual a cor da estudante, ela vai dizer que é branca. Há uma concepção implícita que diz ‘ela é boa demais para ser negra'”, diz. “A literatura mostra ainda que o professor empretece ou clareia o aluno a partir da indisciplina”.

Na entrevista à reportagem, Figueiredo diz que, como as discussões de raça e gênero na educação são graves e urgentes, a conversa acaba ficando muito angustiante. Mas ela guarda um otimismo quando fala das novas gerações.

“Esses dias fui a um evento em Recife, tinha um monte de meninas negras e eu pensei: quanto essas meninas sabem muito mais que eu, que não tinha coragem de abrir a boca na escola”, diz.

“A gente pensa dez vezes antes de falar uma coisa que você [branco] levanta a mão e fala, [porque] você tem o privilégio de falar bobagem. Então eu olhava para elas lá no Recife, todas cheias de si, e tenho certeza de que quando elas entram na escola a coisa não é o melhor dos mundos, mas elas não são como eu. Elas levantam a mão certamente, tretam lá dentro da escola, é outra coisa. E acho que exatamente por causa delas, dos movimentos sociais, que teremos mais uma contribuição geracional do que efetivamente uma atuação do Estado”.

PAULO SALDAÑA / Folhapress

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