SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A mudança na lista de leituras obrigatórias da Fuvest, que pela primeira vez traz somente obras escritas por mulheres, causou polêmica nos meios literários e acadêmicos. A nova seleção exclui todos os homens, inclusive Machado de Assis, que tradicionalmente é cobrado no vestibular da USP.
Desde que a informação foi revelada pela Folha de S.Paulo, em 21 de novembro, os debates se tornaram frequentes e calorosos. Parte desse movimento, no entanto, tem sido silenciada, especialmente dentre os críticos da mudança, que temem o chamado “cancelamento” diante da força atual da pauta feminista, em especial dentro da universidade.
Nos últimos dias, a reportagem tentou ouvir professores e professoras da USP que marcaram entrevistas e depois desmarcaram, explicando que tocar nesse tema é mexer em um vespeiro.
Na internet, postagens foram feitas, refeitas, apagadas. E teve quem tenha se exposto nas redes sociais, mas declinado da proposta de ter sua opinião publicada no jornal ou concordado em fazê-lo desde que sua identidade não fosse revelada.
“Eu gosto de me posicionar, acho importante”, disse à reportagem a escritora Joana Monteleone, doutora em história pela USP e fundadora da Alameda Casa Editoral, editora voltada aos direitos humanos.
Ela é crítica à lista 100% feminina de leituras obrigatórias do vestibular da USP. “E eu sou superfeminista, milito por mil coisas para as mulheres, de aborto a sistema prisional. Mas, nessa questão da lista, acho que há pontos importantes a serem refletidos”, explica. “A lista da Fuvest realmente teve a predominância de homens por muitos anos. Mas, ao mesmo tempo, fazer agora uma lista só com obras de mulheres exclui autores fundamentais e fundantes da literatura brasileira.”
A exclusão de Machado de Assis das leituras obrigatórias da Fuvest por três anos a lista 100% feminina vale para os vestibulares de 2026, 2027 e 2028 tem causado especial comoção. E Monteleone aponta para algo ainda mais sensível nesse debate. “Agora, finalmente, Machado é reconhecido como um autor negro, depois de anos em que isso foi omitido”, ressalta.
Outra ponderação de Monteleone é que a nova lista da Fuvest, de algum modo, reflete a história da literatura do Brasil e os preconceitos da época de cada obra. “No tempo de Machado, havia menos mulheres escrevendo do que homens. Uma lista da Fuvest só com mulheres, de certa forma, mascara o machismo daquele período”, analisa.
Para ela, como “hoje em dia, as mulheres têm mais espaço na literatura, daqui a 30, 50 anos, vamos ter essas autoras refletidas em uma lista de cânones”.
A escritora acha ruim que, por três anos, os cânones fiquem fora da lista, que norteia a leitura no ensino médio. “Por que não priorizar as mulheres, deixá-las, por exemplo, com 70% da lista? Ou então aumentar essa lista, inclusive acrescentando mais autoras, em vez de torná-la excludente?”
A professora Juracy Assmann Saraiva, pós-doutora em teoria literária pela Unicamp que pesquisa a formação de leitores no ensino médio, também considera que a nova lista da Fuvest “privilegia perspectivas excludentes”. “Ao negar a inserção de obras criadas por homens na lista das leituras, a decisão é excludente, não só em relação aos homens, mas também em relação a outros gêneros”, afirma ela, autora, entre outras obras, de “O Circuito das Memórias” (ed. Edusp), sobre Machado de Assis.
Para Saraiva, além disso, a decisão da Fuvest “é preconceituosa em relação às próprias escritoras mulheres, cujas obras não dependem de um processo seletivo de vestibular para serem valorizadas e para afirmarem sua qualidade estética”.
A escritora defende que “a decisão da Fuvest é um equívoco que desconhece a natureza e a função da literatura”. “A obra literária resulta da reflexão de seu autor ou de sua autora sobre experiências humanas, situando-as em determinado tempo e lugar, e oferece ao leitor a possibilidade de vivenciar outros mundos, de exercitar o conhecimento próprio.” Para a seleção de obras literárias, afirma, o fato de o autor ser homem ou mulher “não pode se sobrepor à capacidade humanizadora” de sua obra.
Já a professora de metodologia do ensino da língua portuguesa da Faculdade de Educação da USP, Neide Luzia de Rezende considera que a mudança da lista da Fuvest responde a uma série de movimentos políticos, sociais e culturais. “É uma lista totalmente feminista e antirracista. São autoras que têm uma militância, cujas obras se situam nesses movimentos de resistência contra uma cultura branca, hegemônica”, afirma.
Rezende, que atua na formação de professores e pesquisa o ensino de literatura na educação básica, não vê problemas em excluir, por três anos, Machado de Assis e outros cânones. “É, sim, uma lista radical, que questiona uma seleção imutável de cânones e que traz uma justiça diante do fato de que as mulheres sempre tiveram pouco espaço. A exclusão desses cânones não quer dizer que eles deixarão de ser estudados nas escolas. É uma lista de vestibular, não o currículo do ensino médio.”
A docente, contudo, acha importante que fique clara a forma como a Fuvest escolheu essas autoras e questiona a inclusão de dois nomes: Nísia Floresta (1810-1885) e Narcisa Amália (1852-1924). “A Nísia é muito conhecida pelo trabalho feminista dela, mas seu texto é uma espécie de manifesto, não uma obra de literatura”, pontua. “A Narcisa é considerada uma autora menor, então eu calculo que possa haver um movimento para trazê-la à tona.”
Por outro lado, as outras sete autoras da lista, entre elas Conceição Evaristo, Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles, diz a professora, são inquestionáveis e já muito presentes nas escolas. “Espero que a escolha tenha sido feita pela banca da Fuvest, que os professores da Faculdade de Letras tenham sido consultados. Se não foi assim, se a decisão foi tomada apenas pela diretoria da Fuvest, é um problema, pois a mudança sugere que seja fruto também de pesquisas das áreas de letras e educação.”
Na Faculdade de Letras da USP, um grupo de professores de literatura prepara um artigo para questionar o processo de seleção da nova lista de livros para o vestibular.
Consultada, a Fuvest respondeu que essa é uma informação sigilosa, para a proteção do processo seletivo. “Da mesma forma que a Fuvest não divulga as bancas elaboradoras e corretoras, não divulga quem participa da tomada de decisões que impactam na composição da prova, inclusive na lista de leituras obrigatórias”, afirmou Gustavo Monaco, diretor da Fuvest e integrante do Conselho Universitário da USP.
“Podemos nos valer de integrantes das bancas atuais ou de anos interiores, bem como de consultores externos. E, nos parâmetros da Fuvest, assim como esses profissionais têm que manter sigilo sobre essa atividade, nós temos que manter sigilo sobre eles.”
Em relação às críticas à escolha de Nísia Floresta e Narcisa Amália, Monaco afirma que “são autoras que representam o processo de iniciação das mulheres na literatura brasileira e, por isso, merecem, no modo de ver da Fuvest, estar nessa lista”.
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LIVROS DA FUVEST
Veja abaixo as listas completas das leituras obrigatórias para entrar na USP nos próximos anos
Fuvest 2026
“Opúsculo Humanitário” (1853) Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) Narcisa Amália
“Memórias de Martha” (1899) Julia Lopes de Almeida
“Caminho de Pedras” (1937) Rachel de Queiroz
“O Cristo Cigano” (1961) Sophia de Mello Breyner Andresen
“As Meninas” (1973) Lygia Fagundes Telles
“Balada de Amor ao Vento” (1990) Paulina Chiziane
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) Conceição Evaristo
“A Visão das Plantas” (2019) Djaimilia Pereira de Almeida
Fuvest 2027
“Opúsculo Humanitário” (1853) Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) Narcisa Amália
“Memórias de Martha (1899) Julia Lopes de Almeida
“Caminho de pedras” (1937) Rachel de Queiroz
“A Paixão Segundo G.H. (1964) Clarice Lispector
“Geografia” (1967) Sophia de Mello Breyner Andresen
“Balada de Amor ao Vento” (1990) Paulina Chiziane
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) Conceição Evaristo
“A Visão das Plantas” (2019) Djaimilia Pereira de Almeida
Fuvest 2028
“Conselhos à Minha Filha” (1842) Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) Narcisa Amália
“Memórias de Martha” (1899) Julia Lopes de Almeida
“João Miguel” (1932) Rachel de Queiroz
“A Paixão Segundo G.H.” (1964) Clarice Lispector
“Geografia” (1967) Sophia de Mello Breyner Andresen
“Balada de Amor ao Vento” (1990) Paulina Chiziane
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) Conceição Evaristo
“A Visão das Plantas” (2019) Djaimilia Pereira de Almeida
Fuvest 2029
“Conselhos à Minha Filha” (1842) Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) Narcisa Amália
“Dom Casmurro” (1899) Machado de Assis
“João Miguel” (1932) Rachel de Queiroz
“Nós Matamos o Cão Tinhoso!” (1964) Luís Bernardo Honwana
“Geografia” (1967) Sophia de Mello Breyner Andresen
“Incidente em Antares” (1970) Érico Veríssimo
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) Conceição Evaristo
“A visão das Plantas” (2019) Djaimilia Pereira de Almeida
LAURA MATTOS / Folhapress