Em votação na noite desta terça-feira (20) no plenário do Senado Federal, em Brasília, foi aprovado o projeto de lei 2.253/2022, que acaba com a saída de presos em datas comemorativas, as chamadas saidinhas. O texto vai voltar para a Câmara dos Deputados, mas já suscita discussões dos favoráveis e contrários à medida.
No entanto, um ponto é comum entre os especialistas ouvidos pela reportagem: a urgência com que o Senado votou uma matéria tão importante é prejudicial ao sistema prisional brasileiro.
“O ideal seria que houvesse mais tempo, mais debate público, pareceres técnicos e que a Comissão de Constituição e Justiça tivesse analisado essa proposta de alteração legislativa”, comenta Gustavo Scandelari, doutor em direito, especialista em direito penal e criminologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Núcleo de Direito Criminal do Dotti Advogados.
“Eu não concordo com a urgência com que esse tema tem sido tratado. É um problema antigo, a urgência agora é por conta daquela tragédia, daquele lamentável episódio que ocorreu do homicídio de um agente de segurança pública. Mas isso parece mais um oportunismo político do que uma necessidade real”, completa Scandelari.
Guilherme Carnelós, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito De Defesa) e sócio do escritório Rahal, Carnelós e Vargas do Amaral Advogados, segue na mesma linha e afirma que a proposta de alteração legislativa está sendo votada “de maneira populista”.
“A proposta é baseada em dois ou três fatos que, sim, são graves, assustam e vitimaram pessoas e famílias e que por isso chocam todos nós, mas políticas públicas e políticas que afetam todo o sistema de justiça criminal não podem ser tomadas com base em fatos isolados”, destaca Carnelós. “É o que se chama de direito penal do terror. Que é pegar fatos graves, emblemáticos e estabelecer políticas que afetam o sistema de justiça criminal como um todo com base nesses fatos que não dizem o que é o todo. Então, por isso que eu sou radicalmente contra o fim das saidinhas.”
Em relação ao possível fim das saidinhas, as opiniões divergem um pouco. Gabriel Sampaio, diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos, por exemplo, afirma que essa decisão do Senado pode ajudar as organizações criminosas a conseguirem mais seguidores nas prisões.
“A atual medida legislativa traz consequências negativas tanto do ponto de vista da execução penal quanto da segurança pública ao permitir um maior tensionamento no sistema penitenciário e até mesmo o fortalecimento de organizações criminosas que se alimentam dessa falta de vínculos familiares e sociais para arregimentar mais quadros na sua atuação criminosa”, diz Sampaio.
“Tratar de forma mais dura os 95% dos presos que têm exercido corretamente esse direito e têm nesse direito à saída temporária uma forma de fortalecimento do seu vínculo com a sociedade e a família acaba gerando uma tensão no sistema penitenciário e uma resposta inadequada do ponto de vista da política pública”, alerta Sampaio.
Carnelós também critica a forma como os legisladores brasileiros têm abordado a questão, por, segundo ele, desconhecerem a realidade do sistema prisional e acreditarem que os presos poderão sair facilmente dos presídios para estudarem e trabalharem.
“O discurso na verdade é de que essas saídas temporárias têm uma conexão direta com o aumento da criminalidade, mas isso não é verdade, isso nunca foi provado por ninguém. Na própria exposição de motivos do Flávio Bolsonaro, quando ele admite a proposta de emenda do Sergio Moro, ele afirma que a saída tem que ser cortada porque o sistema carcerário não está dando conta de reeducar os presos. Isso é um absurdo, tão atroz, porque é uma inversão de valores tão clara.”
Outro ponto do projeto atacado por Carnelós é em relação à obrigatoriedade da realização do exame criminológico para a liberação da saidinha. Para ele, isso é, na prática, um subterfúgio para impedir a progressão de regime.
“Não existem profissionais suficientes para fazer o exame. Então, a pessoa cumpre o tempo de pena necessário para poder progredir o regime e daí o exame criminológico vai demorar quatro, cinco, seis meses para ser feito para depois demorar mais dois, três meses para o júri decidir. Então, nisso ela fica oito meses a mais presa, sendo que ela tem direito a estar no regime mais brando”, analisa Carnelós, afirmando que o Conselho de Psicologia já declarou não existir base científica para o exame criminológico. “E daí, contrariamente a tudo isso, vem o legislador e fala que tem que fazer.”
O especialista Gustavo Scandelari se diz favorável ao fim das saidinhas, mas por causa da forma como ela tem sido mantida atualmente.
“Sabemos que a intenção é a de ressocialização, mas não existe nenhum estudo concreto comprovando que a saída temporária, dessa forma, está produzindo mais bem do que mal para a sociedade, porque, afinal de contas, a ressocialização é um programa, ela não depende só da saída temporária, mas de uma série de outros institutos na lei de execução penal que cumprem esse mesmo papel”, comenta.
Como solução, ele faz uma sugestão para compensar a supressão da saída temporária, como incluir um dispositivo na lei de execução penal dizendo que o juiz deve permitir a remissão da pena não só pelo trabalho ou pelo estudo, mas por qualquer outro tipo de interação social do preso com a comunidade.
“E o risco é menor, porque o preso não fica livre sem vigilância na sociedade. Ele é controlado, fiscalizado pelos agentes de segurança pública, pelos agentes penitenciários, que produzem relatórios, que devem validar a atividade do preso, e isso vai tudo para o juiz da execução penal, que aí sim concederia o resgate de dias pela atividade social. E aí, isso contrabalançaria um pouco a pura e simples supressão da saída temporária, que, embora não seja ideal, algum bem, em teoria, ela deve fazer.”
CLAUDINEI QUEIROZ / Folhapress