Espera por moradia no RS se arrasta por falta de terreno, burocracia e eleição municipal

CRUZEIRO DO SUL, RS (FOLHAPRESS) – Sob uma chuva incessante que caía no início de setembro, Caetano Giovanella, 67, arrancava a marretadas os tijolos maciços adquiridos de segunda mão e que davam forma a seu ferro velho em Passo de Estrela, bairro de Cruzeiro do Sul (a 123 km de Porto Alegre) reduzido a escombros na enchente de maio de 2024.

Sua esperança é, pela segunda vez, reutilizar o material para construir uma nova casa e finalmente deixar o galpão retorcido que serve de abrigo provisório para ele e seus animais -uma cabrita, seis cachorros e incontáveis gatos que aparecem à noite em busca de comida. Mas falta o essencial: um local seguro para erguer sua moradia.

Cinco meses depois da maior tragédia do Rio Grande do Sul, a espera de Caetano é espelho da situação de outros tantos gaúchos que ainda não têm um novo lar. Para muitos, a espera se arrasta há mais tempo: uma enxurrada no Vale do Taquari carregou as primeiras casas ainda em setembro de 2023.

Travados pela burocracia e desafiados pela dimensão da catástrofe, os governos ainda não conseguiram dar uma resposta efetiva ao problema habitacional, cuja solução esbarra na falta de terrenos seguros, no tempo das obras e na lentidão provocada pelo período eleitoral.

Até o início de setembro, o governo federal havia entrgado só 9 casas por meio da compra assistida e mais 367 contratadas antes das catástrofes, mas que beneficiaram famílias atingidas. Outras 102 moradias temporárias foram instaladas pelo governo estadual.

São números ínfimos diante das 10,7 mil casas destruídas e 190 mil danificadas desde setembro de 2023, segundo dados informados pelos municípios e reconhecidos pela Defesa Civil Nacional.

“A gente ainda espera que os políticos façam alguma coisa. Se conseguirem pelo menos o terreno para a gente reconstruir novamente, em um lugar mais seguro… porque passar por isso novamente não tem como”, disse Caetano, que também perdeu a casa de dois andares e as lembranças dos 60 anos vividos no mesmo bairro.

“Eu sei que a coisa é um pouquinho demorada. A gente vai esperando. Uma hora dá certo. Fazer o quê?”, afirmou, com um riso tímido e resignado.

A falta de terrenos fora da área alagada é um problema sobretudo em cidades menores, como Muçum, Roca Sales e Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari. Lá, a pouca oferta de imóveis prontos também inviabiliza uma resposta mais ágil com a compra assistida.

Mesmo quando há terreno disponível, o local muitas vezes requer preparo prévio, com terraplanagem, saneamento e iluminação. Já a construção de unidades do Minha Casa, Minha Vida demora pelo menos um ano: são dois a três meses para aprovar o projeto e dez a 14 meses para executar a obra.

O governo do Rio Grande do Sul contratou construções pré-moldadas em aço, que levam menos tempo (90 dias) para ficarem prontas. Mesmo assim, o estado prevê entregar cerca de 200 unidades neste ano e outras 2.500 no primeiro semestre do ano que vem.

“A gente sabe que 200 casas definitivas parece pouco, mas há outras políticas associadas”, afirmou à reportagem a secretária estadual de Planejamento, Danielle Calazans. Segundo ela, o estado não tinha uma política habitacional robusta antes da tragédia e precisou estruturar ações como o aluguel social e as casas temporárias.

O governo gaúcho também assumiu a execução de parte das obras de terraplanagem e saneamento, até para suprir dificuldades das prefeituras. A maior força, porém, está nos programas federais, afirmou a secretária.

“O processo eleitoral atrapalha bastante. Existe uma insegurança. O prefeito tem que investir naqueles terrenos, às vezes tem que desapropriar, e aí tem recurso do município. Então, com certeza há uma diminuição no ritmo”, disse.

O ministro Paulo Pimenta (Secom), que por quatro meses ficou à frente do Ministério Extraordinário de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, avaliou à reportagem que a entrega das casas esbarra na burocracia e no gargalo operacional das prefeituras, sobretudo as menores.

“Tem 22 escolas empenhadas [com recursos liberados] no Vale do Taquari desde o ano passado, e nenhuma prefeitura conseguiu começar até agora a obra”, afirmou. Nas casas, ele percebe a mesma dificuldade. “A burocracia do Estado brasileiro é dilacerante.”

Para tentar destravar as moradias, o governo federal flexibilizou as regras e permitiu que a própria iniciativa privada localize terrenos e apresente projetos dentro dos critérios do Minha Casa, Minha Vida.

O governo também prepara mutirões para a compra assistida. A avaliação é que há desconhecimento das famílias, apesar dos quase 2.000 imóveis prontos. Segundo o Ministério das Cidades, 773 famílias já estão habilitadas e outras 594 devem ser convocadas em breve.

No primeiro mutirão, feito de 24 a 26 de setembro, mais de 40 famílias fecharam a aquisição do imóvel.

Enquanto não saem as casas definitivas, o governo gaúcho pretende ampliar as casas temporárias. O objetivo é conseguir dar mais dignidade às mais de 2.200 pessoas que ainda habitam os 50 abrigos em funcionamento -algumas delas desde o ano passado.

O motorista de caminhão Paulo Vargas da Silva, 64, ficou quatro meses em um abrigo de Cruzeiro do Sul até conseguir se mudar com a companheira para uma das 28 casas temporárias instaladas na cidade no início de setembro. Ele morava na Vila Zwirtes, ao lado do Passo de Estrela. Da antiga casa, só conseguiu salvar os documentos e uma televisão.

“Não tínhamos onde dormir. Um colega arrumou um colchãozinho. Arrumei um cobertorzinho velho para me tapar de noite, que era frio”, relembrou, emocionado. “A primeira noite foi sufocante.”

Abastecido com doações e contemplado com uma casa temporária já equipada com móveis e eletrodomésticos essenciais, ele se disse feliz com a mudança. “Estamos no céu.”

Por outro lado, Paulo lamentou que outras famílias do abrigo ainda não tenham tido a mesma oportunidade. Enquanto sonham com tal desfecho, elas se deparam diariamente com a exibição daquilo que ainda não está a seu alcance -as primeiras moradias temporárias foram instaladas na saída do ginásio que lhes serve de abrigo.

A instalação de outras 50 unidades em Cruzeiro do Sul ainda depende da localização de uma área segura.

Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre, também receberia casas temporárias, mas a exigência de uma área fora da mancha de alagamento abriu um impasse, já que praticamente toda a cidade ficou debaixo d’água em maio. Apenas uma localidade preencheu os requisitos: o chamado Parque Eldorado, na zona rural, a quase 40 km do centro da cidade. A opção foi rejeitada pelas famílias e pela prefeitura.

“Não vejo solução para resolver esse problema. Se alguém disser que é imediato, está falando bobagem”, afirmou o prefeito de Eldorado do Sul, Ernani de Freitas.

Segundo ele, os desabrigados estão recebendo aluguel social enquanto esperam a entrega das casas definitivas. Em paralelo, a prefeitura busca sensibilizar os governos estadual e federal para construir um dique que proteja a região central do município.

IDIANA TOMAZELLI E PEDRO LADEIRA / Folhapress

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