Esquerda enfrenta contradição na segurança pública, diz pesquisadora de Harvard

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A violência policial no Brasil não é um problema desconhecido para Yanilda González, pesquisadora da Universidade Harvard que estuda o problema há mais de uma década nos EUA e na América Latina.

Ao acompanhar um protesto na semana passada contra as mortes na Baixada Santista, na operação mais letal da polícia de São Paulo desde o Carandiru, ela disse ter visto a frustração de jovens e a dor de mães que sofrem com a violência do Estado.

Segundo a pesquisadora, as polícias, usadas como instrumento político ao longo do tempo, acumularam autonomia e poder, mesmo em democracias, que funcionam como barreiras contra tentativas de reforma e controle de suas atividades.

Ela criticou as declarações do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário de segurança, Guilherme Derrite, sobre a operação. “Me chamou a atenção a politização imediata das mortes.”

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P. – A senhora esteve na Baixada Santista na última semana. Qual foi a sua impressão sobre a região?

Yanilda González – Acompanhei dois atos de repúdio, um em Guarujá e outro em Santos. Dava para ver essa frustração dos jovens com a polícia, com o jeito que a polícia atua na região deles. Eram jovens e adolescentes gritando por paz na comunidade.

Participei de reuniões com familiares, movimentos sociais e autoridades locais e realmente havia indicação de que houve realmente abusos por parte da polícia, ameaças contra os familiares, a polícia chegando lá na região perguntando quem tinha passagem e depois voltando, que não havia, em muitos casos, as trocas de tiros ou outras justificativas para o uso de força letal.

P. – Como vê o posicionamento do governador e do secretário de segurança, que defenderam a operação e negaram abusos?

Y.G. – Chamou a atenção o governador Tarcísio dizer “estou extremamente satisfeito” e que não houve excessos, antes de fazer investigação. Foi muito chamativo essa politização quase imediata das mortes.

P. – É comum que figuras públicas mencionem antecedentes criminais dos mortos quando questionadas sobre letalidade estatal. Que sinais isso dá?

Y.G. – Esse tipo de declaração viola todos os princípios de uma polícia democrática. É a politização da segurança pública, indicando que talvez a polícia esteja servindo mais para os interesses do governador. Por outro lado, dá uma justificativa para o uso ilegal da força. A lei não diz que o uso da força letal é permitido quando a pessoa tinha passagem ou antecedentes criminais.

Isso ainda debilita o controle, porque essa justificativa retira a urgência de investigar e de ter um controle externo civil e robusto desses casos e da instituição. Para a corporação, segundo um coronel da reserva da PM paulista que entrevistei, fica liberado matar.

P. – Que resposta o Estado deve dar em casos como a morte do policial Patrick Reis?

Y.G. – Justamente para evitar mais violência existem o Estado e o Estado de Direito, para que qualquer resposta esteja dentro dos parâmetros da lei. É fazer perícia, investigar, buscar suspeitos e processar. Não é causar mais violência em comunidades que já sofrem com violência. O nome do policial Patrick está sendo usado para justificar mais mortes.

P. – Outros estados também registraram episódios com mortes nos últimos dias, como Bahia e Rio de Janeiro. O que une a dinâmica de violência do Brasil a outros países?

Y.G. – Para dar um detalhe, só a polícia do estado da Bahia, mais letal do Brasil, mata mais pessoas do que as 18 mil polícias dos Estados Unidos, que é um país de 330 milhões de pessoas. Enquanto aconteciam essas três escaladas de violência policial no Brasil, pensei muito em 2020, por exemplo, na reação à morte de George Floyd. Houve protestos em todos os EUA, durante a pandemia. Nos casos agora, me chamou a atenção uma resposta um pouco calada da população.

Nas Américas, há um certo apetite social e político pela violência policial. A ideia é que o Estado tem que agir de uma maneira contundente, mas até fora da lei.

P. – Como essa violência se mantém ao longo do tempo?

Y.G. – Me fiz essa pergunta ao estudar polícias como as de Buenos Aires, na Argentina, a polícia colombiana, e a de São Paulo. Na transição das ditaduras para a democracia, houve esforços para fortalecer os direitos humanos e reduzir o papel das Forças Armadas dentro do Estado. Mas não em relação à polícia, que faz um uso estratégico do poder político que tem.

Os governantes utilizam as forças policiais como instrumento para avançar nos seus interesses, e elas cooperam. Mas ganham, em retorno, uma autonomia e uma resistência como nenhuma outra entidade do Estado.

P. – Houve outros governos progressistas na América Latina nas últimas décadas, mas por que essa estrutura da segurança se manteve?

Y.G. – Em Argentina, Brasil e Colômbia, os casos com reformas policiais aconteceram em períodos de governos de centro-direita, somados a casos de escândalo ou indignação coletiva, e a esquerda tem uma contradição. Mesmo que parte de seus eleitores estejam entre quem sofre essas violências policiais, falta uma resposta coerente e estrutural a essa problemática.

O presidente Lula falou no Rio de Janeiro, ao lado do governador [Cláudio Castro], sobre o caso do Thiago, de 13 anos, que a polícia deveria distinguir bandido de um pobre andando na rua. Isso me faz perguntar quem assessora o presidente, porque esse é um exemplo da falta de resposta à segurança pública. Não é que se fosse bandido, a polícia estaria justificada para matar. Não está na lei.

P. – Como o racismo na violência de Estado se manifesta em outros países?

Y.G. – Raça, território e desigualdade são marcadores da violência policial em basicamente todos os países da região. Acontece na Venezuela, em comunidades e setores populares com população de pele mais escura, e na República Dominicana, onde estima-se que 80% da população é negra. A polícia reproduz a desigualdade social que já existe na sociedade.

P. – Como reduzir essa letalidade e aumentar o controle externo?

Y.G. – É muito difícil, mas qualquer mudança que reduza o poder estrutural da polícia seria importante. Um ex-comandante da polícia nacional da República Dominicana me disse: quando uma comunidade pobre protesta por falta de água, nós não mandamos a companhia de água, mandamos a polícia. Então, um caminho seria reduzir a atuação da polícia na sociedade em casos que não têm a ver com o crime, para limitar esse poder estrutural.

O controle não é apenas do Ministério Público, mas do Legislativo e da sociedade. Câmeras de monitoramento, nos EUA, ajudam a reduzir letalidade.

Nesse momento de escalada da violência em vários pontos do país, precisamos dar espaço às vozes de mães que perderam os filhos pela mão do Estado. Uma delas me disse: quando você perde um filho por qualquer outro motivo, você chega até a aceitar. Mas quando é pelo Estado, é impossível, porque você pagou pela morte do seu filho.

RAIO-X | YANILDA GONZÁLEZ, 39

Professora de políticas públicas de Harvard Kennedy School, e autora de “Polícia autoritária na América Latina” (Cambridge University Press, 2020). Nascida na República Dominicana e radicada em Nova York, trabalhou em ONGs de direitos humanos e, desde 2010, pesquisa violência policial, segurança pública e reforma de polícias.

LUCAS LACERDA / Folhapress

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