SÃO PAULO, SP, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A pressão de governadores para que estados possam desenvolver projetos de crédito de carbono no mercado voluntário em paralelo à iniciativa privada travou na Câmara a tramitação da proposta que pretende regular o mercado no Brasil.
Estados da Amazônia Legal querem que o projeto de lei autorize as unidades da federação a comercializar créditos de carbono gerados em todo o território estadual, inclusive em áreas privadas. Hoje, Tocantins e Acre já vendem créditos desse tipo.
O crédito, que equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser emitida na atmosfera, é posto à venda por quem preserva uma área e é comprado por empresas que querem mitigar os danos ambientais decorrentes de suas atividades.
Mas o relator do projeto de lei na Câmara, o deputado Aliel Machado (PV-PR), resiste em ceder à pressão de governadores. Rascunho do relatório ao qual a reportagem teve acesso diz que os estados têm o direito de desenvolver projetos apenas em áreas públicas, como em unidades de conservação.
Na semana passada, o Consórcio Amazônia Legal, que reúne os governadores da região, divulgou um manifesto criticando a atual versão do relatório ainda não protocolado oficialmente.
Os governadores argumentam que os estados precisam de recursos para combater o desmatamento e apontam para a falta de verbas destinadas à região.
Segundo eles, inviabilizar os mercados jurisdicionais, como os mercados estaduais são chamados, “seria um grave e injustificável erro histórico, com consequências insuperáveis para a capacidade de o Brasil cumprir as metas assumidas no Acordo de Paris”.
Como várias das unidades de conservação da Amazônia ainda não estão regularizadas, os estados argumentam que, se o relatório de Machado for aprovado desta forma, os estados não conseguirão arrecadar nada com o mercado voluntário.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, liderados pelo governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), os estados vêm pressionando para que o projeto permita os mercados jurisdicionais de carbono, e até o momento não houve acordo sobre a proposta. Os nove estados da Amazônia Legal são representados por 91 deputados.
O próprio Barbalho já defendeu publicamente os mercados jurisdicionais atualmente, o seu governo está na fase final da elaboração da lei estadual sobre o tema.
A tramitação do projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono no Brasil já dura mais do que o governo federal esperava. O Executivo queria aprovar o texto até o início da COP28, no último dia 30.
Os mercados do Tocantins e Acre, hoje já em operação, englobam todo o território do estado, inclusive propriedades privadas e territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais.
No modelo tocantinense, por exemplo, o governo mediu a variação do desmatamento de 2016 a 2020 em relação aos cinco anos anteriores de cada ano em todo o território e contabilizou que o estado gerou 40 milhões de créditos de carbono.
O governo fechou um acordo com a suíça Mercuria, empresa do setor de energia. Por meio dele, a companhia dará R$ 40 milhões ao estado para a validação e registro dos créditos.
Após esse processo, a empresa comprará, a preço de mercado, todos os créditos já gerados, além daqueles que podem ser desenvolvidos até 2030, quando o Brasil espera zerar o desmatamento. O governo não divulgou estimativas de arrecadação.
De acordo com o governo do Tocantins, 50% do total arrecadado será direcionado para ações de estruturação, monitoramento, controle e reorganização dos órgãos ambientais. Outros 20% irão para povos originários e tradicionais; 20%, para o agronegócio; e 10%, para unidades de conservação.
Os valores serão revertidos em políticas públicas e não chegarão diretamente à conta de nenhum proprietário rural. A expectativa do governo é que os recursos sejam suficientes para reverter o atual aumento na taxa de desmatamento do estado.
Já o Acre repassou 100 milhões de créditos de carbono para uma empresa (a CDSA) controlada por ele, mas que em sua estrutura societária também tem parte, por exemplo, a federação de indústrias local.
Em janeiro, uma reunião da diretoria da CDSA determinou que os 100 milhões de créditos fossem cedidos para uma companhia dos Estados Unidos, chamada Global Environmental Asset Plataform, que passou a ter o direito de vendê-las. O processo não teve licitação e a companhia estadunidense só foi abrir sua sede no Brasil em março.
Pelo acordo, a empresa do governo acreano fica apenas com um percentual de cerca de 10% do valor pelo qual a Global conseguir vender os créditos.
Por avançar sobre terras privadas, os mercados jurisdicionais dificultam a operação de desenvolvedoras privadas de crédito de carbono, e é justamente esse ponto que dificulta a tramitação do PL na Câmara.
Proprietários rurais, por exemplo, já vêm desenvolvendo projetos privados de crédito de carbono no país. Apesar de mais caros, esses projetos podem gerar retornos muitos maiores e individuais.
“Em um projeto privado, um proprietário de terra negocia com o desenvolvedor quanto ele vai receber dos créditos. Uma comunidade indígena que quiser desenvolver projetos de forma privada também vai negociar. Nos mercados jurisdicionais não tem tanta essa flexibilidade”, diz Jeronimo Roveda, secretário-geral da Aliança Brasil NBS, organização que reúne as principais empresas do mercado voluntário de carbono do país.
Os estados que já têm mercados jurisdicionais não impedem a existência de projetos privados, mas obriga que seus desenvolvedores os comuniquem ao governo, responsável por analisar a metodologia utilizada.
“Todo aquele projeto que porventura for desenvolvido no estado do Tocantins e não atender a lei é ilegal”, disse à reportagem o secretário estadual de Meio Ambiente, Marcelo Lelis. Esse ponto, aliás, preocupa o governo federal, responsável por fazer as análises de metodologia dos créditos do mercado regulado.
O manifesto divulgado na semana passada pelos governadores descarta que o mercado jurisdicional afetaria o desenvolvimento de projetos privados.
Lelis afirma que projetos privados ligados ao mercado jurisdicional ou seja, analisados pelo governo chegam a valer três vezes mais no mercado voluntário. Os desenvolvedores não refutam essa estimativa.
Luciano Godoy, advogado e professor da FGV Direito SP, projeta que pode haver um “conflito de competências administrativas”, com uma série de mercados conflitantes, que inclusive deve acabar no STF (Supremo Tribunal Federal).
“Ninguém pode vender a mesma coisa duas vezes, porque o crédito de carbono é um só. Ainda mais nesse caso, é expresso que vai ter litígio no STF, porque envolve a União e estados”, afirmou.
Ele entende que os casos nos quais a lei prevê que o estado é detentor do crédito até de propriedades privadas é um ponto que também deve acabar no Supremo.
Na sua visão, a corte deve entender que isso fere o artigo 5º da Constituição, e que o crédito deve ser considerado dentro do direito de propriedade ou seja, deve ser do titular da propriedade.
“Se o STF não reconhecer dessa forma, como parte do direito de propriedade, então provavelmente ele vai dizer que o estado vai ter de pagar o crédito do qual ele está se apropriando do proprietário do imóvel. Como uma obra pública, na qual o estado tem de desapropriar o terreno”, disse.
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A DISCUSSÃO SOBRE O MERCADO DE CARBONO
O que se debate na Câmara
– Deputados analisam desde outubro projeto de lei que regulamenta o mercado de carbono no país
– Proposta semelhante foi aprovada no mesmo mês no Senado e enviada para a Câmara
– O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), apensou o texto aprovado no Senado àquele criado na Câmara
– O deputado Aliel Machado (PV-PR) é o relator da proposta
O que é o mercado regulado de carbono
– O sistema, em discussão agora na Câmara, estabelece limites de emissões de carbono para as empresas
– Aquelas que não cumprirem seus limites precisam comprar cotas leiloadas pelo órgão gestor do mercado ligado ao governo federal
– Já aquelas que conseguiram emitir menos do que o limite ganham cotas que podem ser vendidas
O que é o mercado voluntário de carbono
– Ao menos até agora, não há gestão do governo nesse modelo
– Empresas privadas entram em contato com proprietários de terras ou com comunidades indígenas e povos tradicionais e mensuram quantos créditos de carbono aquela área gerou nos últimos anos ou quantos serão gerados a partir de um projeto futuro
– Esses créditos são vendidos para empresas que querem compensar voluntariamente suas emissões
O que o mercado regulado tem a ver com o mercado voluntário
– A proposta hoje em discussão na Câmara prevê que créditos gerados no mercado voluntário podem atuar como cotas no mercado regulado, desde que analisados pelo órgão gestor
– Será estipulado, porém, um limite de compras no mercado voluntário para a compensação oficial de emissões
PEDRO LOVISI E JOÃO GABRIEL / Folhapress