OXFORD, INGLATERRA (FOLHAPRESS) – A escritora e historiadora americana Rebecca Solnit, conhecida por livros como “Os Homens Explicam Tudo para Mim” e “A Mãe de Todas as Perguntas”, é também uma ativista climática.
Em abril, em parceria com a ativista Thelma Young Lutunatabua, lançou “Not Too Late: Changing the Climate Story from Despair to Possibility” (não é tarde demais: mudando a história do clima do desespero para a possibilidade; sem edição no Brasil).
A obra reúne artigos de vozes de diversas partes do mundo, como forma de trazer diferentes dimensões da crise climática e, especialmente, de dar esperança. Para ela, um mundo mais “belo”, “abundante” e que “nos dê alegria” pode surgir, se tomarmos atitudes na década atual, decisiva neste processo.
“O que conseguirmos (ou não) fazer nos próximos anos determinará o tipo de planeta em que viveremos e o que será a vida na Terra nos próximos milhares de anos. Essa sensação de que é tarde demais esse fatalismo é parte do motivo pelo qual muitas pessoas deixam de participar”, diz Solnit, em entrevista exclusiva à reportagem.
Como antídoto à inação, a escritora recomenda um resgate da imaginação e da memória histórica.
“Inúmeras boas mudanças foram provocadas por movimentos de base que, muitas vezes, começaram com poucas pessoas, geralmente consideradas insignificantes, impotentes e marginais”, destaca.
Para Solnit, cabe também à esquerda assumir uma nova postura.
“Acho que temos vivido muita tristeza na esquerda, que costuma ver o mundo em termos de escassez, guerras e conflitos”, avalia. “Não podemos gerar abundância por meio de austeridade emocional. Não se chega à bondade por meio da crueldade.”
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PERGUNTA – Por que não é tarde demais para mudar o clima?
REBECCA SOLNIT – Muitas pessoas pensam que é tarde demais e que perdemos nossa chance de fazer algo em relação ao clima, mas estamos vivendo o que eu chamo de década decisiva.
O que conseguirmos (ou não) fazer nos próximos anos determinará o tipo de planeta em que viveremos e o que será a vida na Terra nos próximos milhares de anos. Essa sensação de que é tarde demais esse fatalismo é parte do motivo pelo qual muitas pessoas deixam de participar.
P – Quando a senhora e a ativista Thelma Young Lutunatabua se conheceram e decidiram trabalhar em parceria?
RS – É uma história bem mágica. Durante a pandemia, comecei a contar contos de fadas online, porque parecia, principalmente para as crianças, que o que estava acontecendo conosco fazia parte de um conto de fadas. De repente, todos estávamos isolados e tínhamos de fazer coisas muito estranhas.
Então, nesse processo, Thelma e eu nos aproximamos e percebemos que tínhamos uma opinião muito parecida sobre como abordar a tristeza, o luto, a ansiedade, o desespero e o derrotismo em torno do clima. Daí, decidimos fazer um projeto em parceria.
Passamos quase dois anos conversando até que conseguimos lançar o site Not Too Late e suas páginas em mídias sociais.
Quando descrevi o projeto para um grupo de escritores e outras pessoas envolvidas em questões climáticas, todos disseram que eu deveria transformar aquilo num livro, o que fazia sentido para mim. O livro ficou pronto cerca de um ano após a assinatura do contrato.
P – Como vocês formaram o “time dos sonhos” para fazer o livro?
RS – Nossa equipe vai dos 26 aos 80 anos. São pessoas que vêm de várias partes do mundo, especialmente do Pacífico Sul, onde a Thelma vive, e, claro, temos muitos norte-americanos também.
A maioria são mulheres não brancas e isso não aconteceu porque estávamos tentando atingir uma cota. Foi algo natural, pois queríamos ouvir a voz de pessoas que pudessem falar de todas essas coisas.
São todas elas incríveis: Adrienne Maree Brown, uma jovem ativista negra da Carolina do Norte; Roshi Joan Halifax, líder budista e antropóloga de 80 anos; Farhana Sultana, geógrafa e estudiosa do clima de Bangladesh, e muitas outras.
P – Alguma pessoa do Brasil já fez parte da lista?
RS – Há pessoas do mundo todo, mas, infelizmente, acho que ninguém da América do Sul.
P – Por que é relevante falar em abundância em tempos de crise climática?
RS – Vivemos numa era de pouca esperança e austeridade. As pessoas renunciaram a uma política limpa, ao ar puro, à água limpa, ao solo limpo, à comida limpa, à saúde. Não temos comunidades fortes, confiança nas instituições, ou democracia.
Então, tentamos manter uma visão de mundo convencional, mas é triste reconhecer que a era de escassez e de renúncia é a que estamos vivendo agora, num mundo literalmente dominado pelo veneno físico e político dos combustíveis fósseis.
No mundo que criaremos a partir da transição que precisamos fazer para sair da era dos combustíveis fósseis, podemos ter uma era de abundância e fartura, uma era de esperança, de confiança no futuro, de laços sociais mais fortes e comunidades mais fortes. Uma era com mais tempo, porque as pessoas costumam ter pressa.
Se não precisássemos consumir tanto, não teríamos de produzir tanto e teríamos mais abundância na natureza e mais tempo na natureza.
P – Alguns especialistas em questões climáticas definiram “suficiência” como uma das palavras mais interessantes do último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU). O que acha disso?
RS – Acho que a suficiência é um conceito muito importante, e que a abundância também precisa ser reorientada. Precisamos deixar de pensar na abundância de bens materiais que conhecemos, inclusive no sentido de experiências, viagens e serviços, que é o foco do capitalismo.
Precisamos pensar na abundância de amizades, de tempo, de experiências, de beleza, de confiança, de esperança e de amor. Geralmente, a abundância e a riqueza material são acompanhadas por pobreza emocional, espiritual e social, desigualdade, danos à democracia etc.
P – Por que diz que a imaginação é um superpoder para falarmos sobre a crise climática?
RS – Uma de nossas incríveis colaboradoras, a Adrienne Maree Brown, gosta de dizer que todo processo de organização social é uma espécie de ficção científica, porque estamos tentando fazer algo que ainda não existe. Muitas vezes, sinto que é falta de imaginação em alguns aspectos, e isso gera muito desespero.
Falta a imaginação de que as coisas poderiam ser realmente diferentes. Falta a imaginação de que poderíamos vencer. Falta imaginação, que também significa que falta memória.
Se tivermos uma memória histórica forte, se conversarmos com pessoas idosas que tiveram uma atuação política importante, veremos que o mundo mudou profundamente nos últimos 50, 60, ou cem anos. Mudou tecnologicamente, mudou socialmente, mudou ecologicamente: tanto para melhor quanto para pior.
Também veremos que inúmeras boas mudanças foram provocadas por movimentos de base que, muitas vezes, começaram com poucas pessoas, geralmente consideradas insignificantes, impotentes e marginais.
P – Como desfazer as malas para uma emergência, como a senhora gosta de dizer?
RS – Tirar da bagagem algumas premissas falsas, como nossas suposições sobre a natureza humana e nossa passividade. Então deixamos para trás nossas ideias equivocadas, nossos medos, nossa falta de participação etc. e levamos, numa emergência, as boas ideias que sabemos que serão necessárias para nossos relacionamentos.
O que nos mantém vivas num grande desastre é a força de nossa comunidade, a disposição das pessoas de ajudar umas às outras, nossa capacidade de trabalhar em conjunto e o fato de haver (ou não) fortes desigualdades raciais, de classe ou de outros aspectos.
P – Tivemos vários eventos climáticos extremos no Brasil nos últimos anos, além de crimes ambientais relacionados à má conduta de empresas e à falta de serviços públicos essenciais. Seu livro sobre desastres reflete sobre isso?
RS – Acho que está cada vez mais clara a importância da democracia para enfrentarmos a crise climática. Em parte, a crise climática existe por causa de uma crise democrática.
A grande maioria das pessoas na Terra leva o clima a sério. Essas pessoas querem ver ações climáticas e estão prontas para ver o mundo mudar. São aquelas com interesses escusos que não querem mudanças. Elas formam a minoria que se beneficia do status quo, que também é a elite minoritária causadora da maior parte dos danos climáticos.
As pessoas que realmente entram em pânico num desastre são os líderes, porque sabem que perderam o controle da situação e não se sentem seguros a menos que estejam realmente no controle de forma autoritária e dominadora.
Quando há um terremoto ou outro grande desastre, acontecem coisas demais [ao mesmo tempo] para que a polícia, os bombeiros e as autoridades públicas possam controlar tudo. Então, na verdade, é a sociedade civil que provavelmente vai resgatar e cuidar da gente nos dias e semanas seguintes.
Por outro lado, eles estão errados no que diz respeito à natureza humana, porque acho que eles justificam seus próprios comportamentos acreditando que toda a natureza humana é tão egoísta, gananciosa e implacável quanto eles.
Muitas vezes, parte do pânico da elite é uma tentativa de proteger a propriedade privada às custas de vidas humanas. A crise climática é uma crise que contrapõe propriedade e dinheiro, de um lado, e a vida, do outro.
P – Gostaria de pedir que encerre esta entrevista falando sobre a importância da alegria.
RS – Acho que temos vivido muita tristeza na esquerda, que costuma ver o mundo em termos de escassez, guerras e conflitos. Muitas vezes, tem sido uma visão de mundo muito machista, puritana e cristã. Uma visão de sacrifício, austeridade e renúncia.
Ninguém deve ter prazer e beleza até que todos tenham. Já que nunca chegaremos a um momento em que todas as pessoas do mundo terão acesso a essas coisas, a ideia é que ninguém deveria tê-las.
Eu sempre participei de movimentos que acreditam que devemos personificar as coisas às quais aspiramos. Não podemos criar um mundo mais bonito por caminhos feios. Não podemos gerar abundância por meio de austeridade emocional. Não se chega à bondade por meio da crueldade.
Temos de lembrar que essas coisas não são fraquezas, como, muitas vezes, são vistas de um ponto de vista muito machista. Essas coisas são poderosas. Que o mundo que queremos construir, um mundo de natureza saudável, seja abundante, seja belo e nos dê alegria.
RAIO-X
Rebecca Solnit, 62
Escritora, historiadora e ativista, é autora de mais de 20 livros sobre temas como feminismo e cultura urbana e ocidental. Define-se como “um produto do sistema de educação pública da Califórnia, do jardim de infância à pós-graduação”. Integra o conselho do grupo climático Oil Change International e é colaboradora frequente do jornal britânico The Guardian.
CRISTIANE FONTES / Folhapress