Acesso a território tradicional melhora segurança alimentar dos guarani-kaiowá, indica estudo

Divulgação

Povos indígenas guarani-kaiowá que há dez anos viviam todos em situação de insegurança alimentar avaliam que a retomada de suas terras tradicionais em Mato Grosso do Sul melhorou sua alimentação mesmo num contexto de violações persistentes no acesso a educação, saúde, água e saneamento básico.

Em 2013, 100% dos guaranis-kaiowá que habitavam as áreas de retomada de Guaiviry, Kurusu Ambá e Ypo’i, no sul do estado, diziam estar em situação de insegurança alimentar leve (13,3%), moderada (58,7%) ou grave (28%).

Em 2023, 15% dos indígenas desses mesmos grupos, nesses mesmos territórios, haviam conquistado a segurança alimentar, segundo suas respostas, enquanto 85% ainda afirmavam estar em situação de insegurança leve (37,3%), moderada (31,8%) ou grave (15,9%).

Para 94,9% desses indígenas, a melhoria no índice tem a ver com a retomada de suas “tekoha”, nome dado às terras ancestrais e sagradas dos guarani-kaiowá.

Esses resultados fazem parte de pesquisa inédita lançada nesta quarta (7), Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, e que foca a segurança alimentar dos guarani-kaiowás que batalham pela demarcação de suas terras tradicionais em meio a conflitos nos tribunais e no campo e após uma história de violação de seus direitos territoriais.

Para Nayara Côrtes Rocha, secretária-geral da Fian (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas), ONG responsável pela pesquisa, os resultados do estudo corroboram para a interpretação de que o acesso de povos indígenas a seus territórios ancestrais é fundamental para a segurança alimentar.

Boa parte das terras indígenas guarani-kaiowá foram criadas em 1920 pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que delimitou oito reservas indígenas no sul do que é hoje o Mato Grosso do Sul e nelas concentrou diferentes comunidades indígenas, algumas até mesmo rivais, liberando seus territórios tradicionais para a colonização.

A concentração e o confinamento dos guarani-kaiowá nessas reservas comprometeu seu modo de vida tradicional, baseado na caça e no plantio de subsistência, levando a problemas de insegurança alimentar e nutricional nessas populações.

“Demarcaram áreas sem mata, sem rios e sem espaço para plantio. A ideia do SPI era assimilar os indígenas para que se tornassem não indígenas”, avalia Verônica Gronau Luz, professora na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Grande Dourados e uma das coordenadoras da pesquisa.

“Foi uma ruptura muito gerada pelo Estado brasileiro, que gerou problemas culturais e de organização que o próprio Estado nunca resolveu. Muitos indígenas cansaram de esperar e foram à luta para retomar seus territórios”, afirma. “Eles encontraram áreas tomadas pela monocultura, pelo uso de agrotóxicos e por fazendeiros que não admitem que esses territórios eram, antes deles, dos guarani-kaiowá.”

Nas últimas duas décadas, movimentos de retomada dos territórios tradicionais ganharam força, intensificando os conflitos com fazendeiros locais que fizeram do Mato Grosso do Sul um dos estados onde mais indígenas são assassinados.

Em 2013, o MS concentrou 62% das mortes de indígenas do país. A maioria das vítimas (31) era de guaranis-kaiowá. Em 2022, dado mais recente disponibilizado pelo CIMI (Conselho Indígena Missionário), o estado representou 21% dos assassinatos de indígenas, atrás apenas de Roraima. A persistente violência contra os guarani-kaiowá fez o Ministério dos Povos Indígenas criar um gabinete de crise no Mato Grosso do Sul para monitorar a situação na região.

A promulgação da lei do marco temporal, em dezembro passado, acirrou ainda mais os ânimos. A proposta determina que as terras indígenas passíveis de demarcação seriam aquelas ocupadas pelos povos na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Desde 1920, os guarani-kaiowá estão em reservas criadas arbitrariamente pelo finado SPI.

“A gente repudia o marco temporal porque em 1917 fomos confinados nessas reservas, e os parentes estão buscando uma retomada que é constitucional”, afirma a enfermeira e especialista em saúde indígena Indianara Ramires Machado, 33, que nasceu na reserva de Dourados, um dos símbolos da política do SPI. “O Mato Grosso do Sul não é todo ‘tekoha’ [área tradicional]. São locais específicos ocupados pelos antepassados e hoje tomados por grandes monoculturas”, afirma ela, que descreve a reserva onde mora como algo similar a um espaço urbano.

“Em Dourados, mal temos espaço para um quintal”, diz. “Essa luta pela terra permitiu que guaranis-kaiowá fizessem sua roça comunitária, com plantação de abóbora, milho e mandioca. Eles falam que sua alimentação melhorou porque agora têm mais acesso a comida boa, indígena. Mas sabemos que a situação deles ainda é muito precária.”

A pesquisa aponta que, de 2013 a 2023, melhorou o acesso desses grupos ao Bolsa Família, mas que segue precário o acesso a água (apenas 14,8% tem água via rede pública de abastecimento) e às coletas de esgoto (só 0,4% tem rede de esgoto) e de lixo (0,4% tem coleta pela prefeitura local). Em 2023, 10% dos guarani-kaiowá desses territórios de retomada ainda não têm documentos.

“A retomada das ‘tekoha’ permitiu o ressurgimento das roças, mas, como essas são consideradas áreas de litígio, seus habitantes são considerados como invasores e têm acesso dificultado a algumas políticas públicas essenciais de saúde e saneamento”, afirma Côrtes Rocha, secretária-geral da Fian.

Gronau Luz endossa que a demarcação é importante porque traz segurança para o plantio da roça nos “tekoha” e permite o acesso desses grupos aos bens públicos básicos que hoje não chegam a eles por conta do status litigioso dos territórios que ocupam.

FERNANDA MENA / Folhapress

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