Um novo estudo sobre os componentes genéticos da atração por pessoas do mesmo sexo sugere que homens bissexuais podem ter um sucesso reprodutivo ‘ou seja, uma capacidade de gerar filhos’ maior do que a média. Isso levaria essa orientação sexual a ser favorecida pela seleção natural e se manter na população ao longo do tempo.
A pesquisa, que acaba de sair no periódico especializado Science Advances, soma-se a uma longa série de análises de DNA que, desde 1990, têm buscado entender os aspectos biológicos da variabilidade sexual humana.
As novas conclusões dos pesquisadores Siliang Song e Jianzhi Zhang, da Universidade do Michigan em Ann Arbor (EUA), estão despertando polêmica porque a dupla identificou uma associação entre os genes ligados à bissexualidade e genes ligados a uma suposta maior tendência a correr riscos. É essa combinação, e não apenas a orientação bissexual, que estaria por trás do sucesso reprodutivo aumentado.
“Trata-se de uma observação empírica. Não estamos fazendo um julgamento moral sobre correr riscos e acreditamos que é algo com prós e contras, como quase qualquer outra característica. Em parte, trata-se de uma questão biológica, e deveríamos [tentar] entendê-la”, declarou Zhang em entrevista ao site do grupo Science, que também é responsável pela publicação do estudo.
A biologia evolucionista costumava enxergar o comportamento não heterossexual como algo um tanto enigmático porque os seres vivos, a rigor, seriam máquinas de reprodução. O principal mecanismo da evolução, a seleção natural, estabelece que os indivíduos com características genéticas que lhes conferem maior capacidade reprodutiva, deixando mais descendentes, acabam espalhando essas características pela população ao longo das gerações.
Assim, de um ponto de vista simplista, seria de esperar que formas de sexualidade sem potencial reprodutivo, envolvendo indivíduos do mesmo sexo, acabariam rapidamente eliminadas pela seleção natural. No entanto, essa forma de sexualidade aparece em inúmeras espécies de animais, de insetos a primatas como nós. Além disso, está presente em todas as sociedades humanas e em todas as épocas, numa proporção que costuma girar entre 2% e 10% dos indivíduos. Por fim, gêmeos idênticos, cujo DNA é quase 100% igual, têm uma chance mais elevada que a média de não serem heterossexuais caso seus irmãos também não o sejam, indicando a presença de um componente genético para o comportamento.
Essas constatações levaram diversos pesquisadores a postular que poderia haver um elo contraintuitivo entre uma herança genética que favorece o comportamento não hétero em certos contextos, de um lado, e o sucesso reprodutivo, do outro.
Um caminho para isso poderia ser a chamada seleção de parentesco: indivíduos que preferem parceiros do mesmo sexo poderiam favorecer, de alguma forma, a reprodução de seus parentes próximos. Isso poderia acontecer das mais variadas formas, como uma ajuda extra no sustento da família ou cuidando dos filhos dos parentes héteros, por exemplo.
Parentes próximos costumam carregar as mesmas versões de uma ampla gama de genes. Assim, mesmo que os não heterossexuais se reproduzam menos, sua ajuda para a família aumentaria a chance de que as versões de genes típicas daquele grupo se multipliquem mais na população, de modo que, nas gerações seguintes, o comportamento não hétero influenciado por esses genes volte a aparecer.
Outra possibilidade é o que os geneticistas chamam de pleiotropia, que corresponde à influência de uma mesma variante de DNA (ou de um conjunto de variantes) sobre múltiplas características. Isso acontece, por exemplo, na domesticação de animais. Dar preferência à reprodução dos indivíduos mais dóceis também tem efeitos sobre uma série de outras características dos animais, como a cor da pelagem e o formato das orelhas e focinhos.
Em suma, Zhang e Song afirmam ter identificado um caso de pleiotropia envolvendo justamente contribuições genéticas para o comportamento ligado a correr riscos que também estariam associadas ao comportamento bissexual. Eles chegaram a essa conclusão depois de peneirar uma enorme base de dados pública, o Biobank do Reino Unido, no qual estão cadastrados cerca de 500 mil britânicos de origem europeia, com informações genéticas e também sobre diversos aspectos de sua saúde e seu comportamento, inclusive a sexualidade.
Basicamente, o que eles fizeram foi peneirar os dados de DNA do Biobank e sua associação com diferentes tipos de comportamento sexual, divididos em três grandes grupos: pessoas que tiveram apenas relacionamentos heterossexuais ao longo da vida, as que tiveram parceiros de ambos os sexos e as que tiveram apenas parceiros do mesmo sexo.
No geral, eles verificaram, primeiro, que os autodeclarados héteros tinham mais filhos (1,86 filho por pessoa, em média, contra 1,32 filho para cada bissexual e 0,47 para cada homossexual). Os dados não especificam os detalhes dessas médias, mas é possível supor que mesmo as pessoas que se declararam exclusivamente homossexuais geraram filhos biológicos por meio de métodos de reprodução assistida.
Essa média, no entanto, esconde o fato de que existe uma correlação estatisticamente significativa entre ser bissexual do sexo masculino e ter mais filhos do que o esperado (quando se somam as mulheres bissexuais, a correlação é negativa, já que elas têm menos filhos, o que anula o efeito para ambos os sexos). E isso parece ser mediado ou influenciado pela presença de variantes genéticas associadas a correr mais riscos (também segundo autodeclaração dos participantes); em homens bissexuais sem essas variantes, a associação com maior sucesso reprodutivo desaparece.
Como exatamente isso poderia acontecer? Em tese, a tendência a correr mais riscos poderia corresponder a uma busca mais intensa por parceiros sexuais em ambos os sexos, ou a maior desinibição comportamental, elementos que poderiam resultar numa capacidade maior de gerar filhos. Mas não é simples esclarecer o mecanismo exato.
Essa incerteza, bem como o possível estigma associando bissexualidade com tendência a correr riscos, motivou várias das críticas ao trabalho da dupla da Universidade de Michigan.
Para Steven Reilly, geneticista da Escola de Medicina da Universidade Yale (EUA), apontou em entrevista à Science, por exemplo, que a associação com “correr riscos” vem de respostas a uma única pergunta dos questionários do Biobank ”você é uma pessoa que gosta de correr riscos?”, sem detalhar quais, de forma que não fica claro o que esse comportamento poderia significar.
Já Robbee Wedow, especialista em sociogenômica da Universidade Purdue, também nos EUA, declarou à publicação que “análises fracas como essa podem ser usadas para criar uma narrativa sobre bissexualidade e evolução que não é verdadeira” e turbinar o preconceito.
No final do artigo, os autores do novo estudo destacaram que sua intenção não é essa, num parágrafo muito incomum em publicações desse tipo. “Queremos deixar claro que nossos resultados predominantemente contribuem para a diversidade, riqueza e melhor compreensão da sexualidade humana. Sua intenção não é de forma alguma sugerir ou apoiar a discriminação feita com base no comportamento sexual”, escreveu a dupla.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress