A disparidade de gênero vem caindo na ciência, mas as mulheres seguem sub-representadas na autoria de artigos científicos, principalmente entre aqueles que recebem o maior volume de citações.
No grupo dos 2% dos autores com mais referências entre os pares em estudos publicados em 2021, havia 3,21 vezes mais homens do que mulheres. A predominância masculina é ainda maior quando são considerados os pesquisadores com mais de 30 anos de atividade: 6,41 vezes.
A diferença, porém, está melhorando. No grupo dos mais jovens, com as primeiras publicações após 2011, a vantagem dos homens cai para 2,28 vezes.
Esses e outros dados integram um novo estudo, publicado na revista especializada PLoS Biology, que analisou uma base de 5,8 milhões de autores com gênero identificado cada um deles com ao menos cinco publicações. Os homens representaram cerca de 3,8 milhões de entradas, enquanto as mulheres eram 2 milhões.
Para lidar com esse enorme volume de informações, os responsáveis pelo trabalho usaram uma série de ferramentas de análise automatizadas de dados. O material foi retirado da base Scopus, que agrega diversas disciplinas e reúne mais de 80 milhões de artigos científicos.
A definição do grupo dos 2% com mais menções entre os pares levou em conta não só o número de citações em si (com diferenças se era autor principal ou não, por exemplo), mas particularidades de cada área. Também foram feitas análises com e sem autocitações, que não resultaram em diferenças significativas.
A classificação por gênero foi feita usando um sistema de aprendizado por máquina. O algoritmo analisou o primeiro nome dos autores e atribuiu um gênero com base na probabilidade de esse nome estar associado a um homem ou a uma mulher.
O modelo foi treinado em um grande conjunto de dados de nomes masculinos e femininos, provenientes de diferentes origens, países e culturas. A análise final só incluiu as atribuições de gênero com pontuação de confiança superior a 85%.
O artigo avaliou a questão de gênero em 174 subáreas do conhecimento. Para melhor análise e interpretação, os resultados foram ainda divididos em grupos menores, consoante a data de entrada em atividade dos autores analisados. Assim, foi possível acompanhar um pouco da evolução do cenário ao longo do tempo.
Essa análise mostrou progresso para o equilíbrio de gênero, ainda que de forma lenta. Entre o grupo de pesquisadores mais jovens, 32 das 174 áreas analisadas tiveram número equivalente ou até superior de mulheres entre os autores mais citados.
Essa diferença acentuada da presença feminina nos diferentes subgrupos analisados teria origens multifatoriais.
“Provavelmente algumas áreas já começaram com um desequilíbrio de gênero mais acentuado e levariam mais tempo para que o equilíbrio fosse alcançado. Isso poderia envolver modelos de oportunidades disponíveis, percepções, visões equivocadas e falta de apoio organizacional para corrigir as diferenças de gênero nessas disciplinas”, disse à Folha de S.Paulo um dos autores do trabalho, John Ioannidis, pesquisador da Universidade Stanford, nos Estados Unidos.
“Ao mesmo tempo, um mundo perfeitamente imparcial poderia ainda ter mais mulheres citadas em alguns campos, enquanto haveria mais homens citados em alguns outros. Eu espero que em um número igual, mas não podemos esperar que tudo seja sempre 50 a 50% dentro todos os subcampos da ciência.”
As publicações científicas e suas respectivas citações por pares são uma das principais métricas de avaliação usadas no universo acadêmico. No novo estudo, os pesquisadores argumentam que esses dados podem contribuir com esforços para promover a diversidade e a inclusão de forma mais ampla na ciência.
“Os decisores políticos e as agências de financiamento devem estar conscientes desta disparidade de gênero e monitorar a sua evolução, tentando proativamente eliminá-la. Afinal, muitas das decisões que tomam podem melhorar as coisas ou, infelizmente, piorá-las”, diz Ioannidis.
Na avaliação de Helena Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), as mulheres enfrentam desafios adicionais na carreira acadêmica, uma vez que normalmente despendem mais tempo com cuidados dos filhos e na realização de tarefas domésticas do que os homens.
“Infelizmente, essa uma realidade no Brasil e em muitos outros países. Existe uma sobrecarga em casa que pesa para as mulheres. Melhorou, mas ainda há num longo caminho a percorrer”, afirma Nader, que não participou do estudo.
“Não é à toa que vários estudos mostraram que, durante a pandemia de Covid-19, a produtividade [em termos de artigos] dos cientistas homens aumentou, enquanto a das mulheres diminuiu”, exemplifica.
Segundo a presidente da ABC, outra barreira pode ser a dificuldade para se ausentar de casa, reduzindo as participações femininas em congressos científicos. “Essa é uma das hipóteses que estão presentes em outros trabalhos. Eu acho que faz sentido. Os congressos têm um papel importante nas citações, já que as pessoas citam também quem elas conheceram nesses eventos. Se as mulheres participam menos dos congressos, isso pode ter um impacto.”
O novo estudo dos pesquisadores de Stanford também buscou fazer uma divisão dos autores por nacionalidade, embora reconheça que esse esforço foi complicado por diversas razões, desde a dificuldade de encontrar informações sobre o local de nascimento até a mobilidade geográfica dos cientistas ao longo da carreira.
De maneira geral, foi adotado o critério de incluir a nacionalidade da primeira publicação dos pesquisadores como informação de seu país de origem.
Na base de dados geral, o número de autores de países de alta renda (como Estados Unidos e Reino Unido) foi quase o dobro dos oriundos de nações em desenvolvimento (a exemplo do Brasil), mas a diferença caiu substancialmente entre os cientistas mais jovens, já como reflexo da ampla presença dos chineses na última década.
A quantidade de pesquisadores cujo gênero estava com atribuição “incerta”, porém, foi superior entre aqueles oriundos de países com menos recursos: 56,2% contra 25,3%.
Os dois grupos de países tiveram uma preponderância semelhante de homens sobre mulheres entre os autores mais citados (3,18 e 3,39). No entanto, na divisão entre os que começaram a publicar depois de 2011, o desequilíbrio diminuiu mais nos países de alta renda, passando para 2,09. Nos demais, ficou em 2,93.
“Penso que isso [a disparidade de gênero no topo das pesquisas] significa que muitas mulheres extremamente talentosas não têm oportunidades suficientes para florescer e prosperar. Esta é uma grande perda para elas, mas também para a comunidade científica em geral, que perde contribuições importantes de algumas das melhores mentes”, disse John Ioannidis, da Universidade Stanford.
GIULIANA MIRANDA / Folhapress