SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Antes sempre movimentada, a rua Santa Ifigênia, uma das mais antigas vias de comércio especializado de São Paulo, enfrenta uma de suas piores crises atualmente, com a perda de clientes em meio a deslocamentos de dependentes químicos pela região central.
“O que afasta as pessoas é o medo de vir pra cá. Hoje o movimento não é 10% do que já foi”, afirma o lojista Joseph Riachi, 70, que trabalha na região há quase quatro décadas.
Para ele, a queda no movimento está diretamente relacionada à sensação de insegurança provocada pela aproximação da cracolândia ao centro comercial, conhecido até mesmo fora do país como referência em produtos eletrônicos. A tensão no bairro tem crescido a cada migração dos dependentes químicos, e episódios de violência se tornaram recorrentes.
Há algumas semanas, após protesto de comerciantes, o fluxo de usuários de drogas se deslocou para a rua dos Protestantes, depois de cerca de um mês concentrado na rua dos Gusmões, a menos de um quarteirão da Santa Ifigênia.
A mudança, contudo, ainda não trouxe de volta o público da rua, que permanece esvaziada e com lojas fechadas. De acordo com a união dos lojistas, o faturamento do comércio caiu em média 40% desde a dispersão da cracolândia no ano passado.
Geraldo Barbosa, 75, é lojista na Santa Ifigênia há 30 anos, sempre no primeiro quarteirão da rua –entre a avenida Duque de Caxias e a rua General Osório. O local fica próximo da praça Júlio Prestes, área que por muitos anos foi ocupada pela cracolândia.
“Antes, quando eles [dependentes químicos] ficavam lá, a gente não tinha tantos problemas. Quando tinha operação, às vezes respingava na gente, mas o que aconteceu agora foi como uma enxurrada”, disse Barbosa.
Em agosto, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou em primeiro turno o projeto de isenção de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) para algumas ruas da região. A proposta foi apresentada pela gestão Ricardo Nunes (MDB) e prevê a isenção nos anos de 2024 e 2025.
Procurada, a prefeitura disse que articula ações de segurança com o governo estadual, de Tarcísio de Freitas (Republicanos), e que intensificou o patrulhamento da GCM (Guarda Civil Metropolitana), que conta hoje com 1.600 agentes na região.
A Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, disse que ampliou o policiamento e monitora a movimentação dos usuários para garantir a segurança de moradores, comerciantes e de quem frequenta a região. Segundo a pasta, roubos e furtos na área seguem em queda pela 20ª semana consecutiva.
Comércio na região nasceu para atender elites
Devido a sua localização, a Santa Ifigênia já era uma das principais ruas comerciais de São Paulo muito antes de se tornar referência em eletrônicos. As primeiras lojas abertas na região, mais de um século atrás, vendiam artigos luxuosos e tinham como público-alvo a elite paulista que se instalava nos Campos Elíseos, primeiro bairro planejado da cidade.
“A inauguração da linha férrea [em 1867] criou a possibilidade de o fazendeiro morar em São Paulo e ir para o interior acompanhar a produção do café quando necessário. Isso dá origem ao primeiro bairro de elite da cidade, com o loteamento dos Campos Elíseos no final do século 20”, explica o urbanista Fábio Mariz, professor da USP (Universidade de São Paulo).
Como ficava no caminho entre os casarões do novo bairro e as estações da Luz e Júlio Prestes, a Santa Ifigênia passou a concentrar alfaiates, selarias e lojas de instrumentos musicais, entre outros estabelecimentos voltados à população mais abastada. Paralelamente, hotéis e hospedarias também se instalaram na região nas primeiras décadas do século passado, em prédios inspirados na arquitetura europeia.
Com o surgimento de outros bairros em áreas mais altas da cidade, como Higienópolis e a região da avenida Paulista, a burguesia cafeeira pouco a pouco deixou o centro da cidade, e o comércio já estabelecido precisou se diversificar.
Segundo documentos da Câmara de Lojistas da Santa Ifigênia, em 1936 a rua já tinha firmas especializadas em abastecer a incipiente indústria brasileira com peças e componentes elétricos. Nas décadas seguintes, esse tipo de comércio foi ganhando cada vez mais espaço e a partir dos anos 1980 tornou a Santa Ifigênia uma referência internacional.
A família de João Bolsoni, 59, presenciou essa mudança no perfil da Santa Ifigênia quando abriu uma loja de rádios e componentes para manutenção em 1962. “Na época o que dominava a rua eram as confecções, mas já crescia o comércio de eletroeletrônicos”, disse o comerciante, que mantém a loja até hoje.
Proprietário de uma loja de iluminação especial, Arthur Abduch, 49, faz parte de uma das famílias mais antigas da região. “Estamos na rua há quase cem anos. Meu bisavô, que veio da Síria, foi o primeiro a chegar, primeiro vendendo tecidos finos”, conta o comerciante.
Ao longo das décadas, o perfil do negócio foi mudando junto com o restante da rua, até que em 1985 foi aberta a loja de lâmpadas especiais que até hoje atende produções de teatro, cinema e televisão, disse Abduch, sobre a queda no movimento.
Antiga rodoviária inicia processo de degradação
A inauguração do antigo terminal rodoviário da Luz, em 1961, acentuou as transformações na Santa Ifigênia e deu início ao processo de desvalorização do bairro que levaria às alcunhas “boca do lixo” e “quadrilátero do pecado”.
Aberta nas imediações da estação de trem Júlio Prestes, a primeira rodoviária de São Paulo se tornou o principal ponto de chegada à cidade, trazendo grande movimento à região, que passou a contar com uma gama maior de serviços.
Edifícios centenários, hoje tombados pelo patrimônio histórico, se tornariam pensões de baixo custo para a população migrante que chegava à capital paulista diariamente. Ao mesmo tempo, as mudanças no bairro atraíram a prostituição, o tráfico de drogas e outras formas de contravenção, que conviviam com o comércio formal.
A desativação do terminal, em 1982, tornou ociosa parte da estrutura de serviços da região, acelerando o esvaziamento e degradação da área. Nos anos seguintes, grandes lojas de eletrônicos enfrentaram crise e tiveram que fechar as portas na Santa Ifigênia.
Quando o crack chegou a São Paulo, na década de 1990, aquele pedaço do centro se mostrou ideal para abrigar as cenas abertas de uso de droga. “O abandono da elite é o principal motivo da decadência do bairro. A cracolândia é uma consequência dessa decadência e não essa causa”, afirma Mariz, da USP.
Nas últimas décadas, autoridades tentaram de várias formas revitalizar e valorizar a região, seja com a criação de equipamentos culturais e projetos urbanísticos para promover a reocupação da área. Ações policiais também contribuíram para que a cracolândia migrasse por bairros vizinhos, mas não solucionaram o problema.
“A região possui um patrimônio histórico, arquitetônico e cultural extremamente importante. Mas o investimento público ainda não gerou o que se esperava, que é a valorização da área para termos um centro mais vivo e mais potente”, acrescenta o urbanista.
LEONARDO ZVARICK / Folhapress