MADRI, ESPANHA (FOLHAPRESS) – A enfermeira Aziza (nome fictício), 26, estava grávida e foi torturada e estuprada nos quatro meses que passou nas prisões da República Democrática do Congo. O caminhoneiro Issa-Balla, 51, perdeu o irmão na travessia em um barco lotado, ao escapar da República Centro-Africana.
A corretora Daria Polianska, 38, deixou oito imóveis para trás e sua casa já sem portas ou janelas ao fugir de Kherson, na Ucrânia, ao lado de sua mãe, Marina, 58. Em comum, esses refugiados acabaram em Madri, capital da Espanha, onde, de formas diferentes, enfrentam a burocracia para receber asilo na Europa.
O caso das ucranianas, que migraram abril do ano passado, foi simples. “No primeiro dia em Madri, já recebemos documentos, inclusive permissão de trabalho”, conta Daria à Folha. Ela também conta receber do governo espanhol, junto à mãe, EUR 500 (pouco mais de R$ 2.600) por mês para pagar aluguel e outros EUR 520 (R$ 2.750) para alimentação, além de aulas de castelhano para facilitar a adaptação.
Já os africanos ainda aguardam a ligação das autoridades para que possam dar entrada no processo de pedido de asilo. Aziza, que deu à luz no dia em que chegou na Espanha, espera há cinco meses. Issa, há quase um ano e meio. Ambos dependem da Cruz Vermelha, que oferece alimentação e estadia a refugiados em Madri.
Foi esse descompasso que acendeu uma luz na cabeça de Sharon Xuereb, uma pesquisadora da Faculdade de Psicologia e Ciências Sociais da Open University, do Reino Unido. Nascida em Malta, Sharon diz estar acostumada ao convívio com refugiados da África, uma vez que a pequena ilha fica a meio caminho entra o continente e a Sicília. “Sempre recebi refugiados em casa, quando não havia lugar aonde eles pudessem ir”, conta. “E percebi que os ucranianos estavam sendo melhor tratados.”
Na pesquisa, Xuereb ouviu 287 pessoas no Reino Unido e em Malta e colocou essa dicotomia em números. Em seis grupos de perguntas, a pesquisadora mostrou que os refugiados ucranianos despertam mais sentimentos positivos nos europeus entrevistados do que os africanos e sírios, assim como menos sentimentos negativos.
Os ucranianos também passam menor percepção de ameaça e sofrem menos preconceito clássico –“eles devem voltar para seus países”– e condicional –“eles devem voltar para seus países assim que a situação lá melhorar”. Por fim, há maior propensão dos entrevistados em ajudar ucranianos do que sírios ou africanos.
“Os governos lidam com requerentes de asilo de diferentes países de maneiras diferentes. Por exemplo, em abril de 2022, o governo do Reino Unido começou a oferecer vistos a pessoas que viajaram da Ucrânia e a pagar aos cidadãos britânicos para acolherem ucranianos nas suas próprias casas. No entanto, durante o mesmo período, o governo do Reino Unido publicou um plano segundo o qual alguns requerentes de asilo que chegassem ao Reino Unido através do Canal da Mancha seriam enviados para Ruanda, para então ser processado o seu pedido de refúgio”, diz o artigo de Xuereb.
Há diversas explicações para as diferenças. “Embora Malta e o Reino Unido sejam países europeus de herança cristã, semelhantes à Ucrânia, Malta está geográfica e culturalmente mais próxima da Síria do que o Reino Unido, apesar das diferenças religiosas. Etnicamente, religiosamente e culturalmente a Somália é diferente tanto do Reino Unido como de Malta, embora os somalis estejam bem representados entre a população requerente de asilo em Malta.”
Mesmo assim, os refugiados entrevistados pela Folha afirmam que não sentiram nenhum preconceito em Madri. “Para mim, os espanhóis são como anjos”, diz Aziza. Sua tragédia começou quando ela atendia em domicílio um casal politicamente ligado aos dirigentes da República Democrática do Congo. Ela conta que, após ficar grávida, a dona da casa passou a suspeitar que o filho fosse de seu marido.
Uma vez, Aziza participou de uma manifestação antigovernista e chegou atrasada para o trabalho. No dia seguinte, foi levada por policiais e passou quatro meses presa. Sofreu espancamentos e estupros até que um policial lhe facilitou a fuga. Seu pai subornou um oficial de imigração e conseguiu dinheiro para uma passagem para a Espanha, com escala na Turquia. O filho nasceu em solo espanhol, mas só será considerado europeu se Aziza conseguir o asilo e fazer uma nova solicitação para a criança. Ela mora hoje em um centro da Cruz Vermelha.
Tempos depois de chegar a Madri, ela recebeu um vídeo em seu melhor amigo aparece sendo torturado pelas forças de segurança. As imagens, vistas pela reportagem, mostram um homem deitado no chão ensanguentado, com a camiseta levantada até a altura do peito e nenhuma pele recobrindo seus órgãos abdominais. Ele ainda respira.
Issa-Balla também teve problemas políticos quando seu irmão mais velho passou a militar na oposição. Segundo ele, o presidente da República Centro-Africana fez um acordo com o mercenário Grupo Wagner, que começou a eliminar seus adversários políticos. “Lá, quando uma pessoa está ameaçada, a família toda também passa a ser”, conta.
Ele e o irmão mais novo conseguiram chegar ao Marrocos, onde buscaram barcos para atravessar o Mediterrâneo. Na primeira tentativa, seu irmão morreu. Na segunda, o barco foi encontrado pela Guarda Costeira espanhola, que os resgatou. A travessia lhe custou EUR 3.000 (cerca de R$ 15,8 mil).
A família Polianska, por sua vez, teve que sair de seu país de origem quando pouco restava de sua casa em Kherson, uma das cidades mais atacadas no início da Guerra da Ucrânia. Mãe e filha conseguiram pegar um trem de Odessa a Strii e atravessaram a pé a fronteira com a Eslováquia. Ali, compraram duas passagens de ônibus para Bolonha, na Itália.
Na Itália, porém, ninguém as acolheu. Dormiram numa delegacia e foram orientadas a seguir viagem. Por meio de grupos de WhatsApp, elas descobriram que os melhores países para refugiados eram Irlanda e Espanha. Acabaram, então, em Madri. Após receberem papéis de asilo e permissão para trabalhar, com a ajuda da Cruz Vermelha, encontraram um apartamento em Parla, município ao sul da capital.
Segundo o coordenador do programa de refugiados da Cruz Vermelha em Madri, José Zamora, a entidade atendeu 22 mil pessoas na cidade em 2022 e cerca de 8.000 em 2023. “Essa grande diferença se deve aos milhões que fugiram da Ucrânia no ano passado”, explica.
Sobre as diferenças de tratamento, Zamora afirma que todos passam pelos mesmos procedimentos na Espanha, mas alguns pulam etapas. Caso não seja negado de primeira, qualquer pedido de asilo será encaixado em um de três tipos. O primeiro se chama estatuto de refugiado, que acontece quando a situação de perigo de determinada pessoa não vai mudar em seu país. Exemplo: perseguição por orientação sexual ou religiosa. Neste caso, a pessoa pode receber asilo vitalício.
O segundo caso é a proteção subsidiária. É quando há conflito armado nos países, mas a situação pode se reverter se determinada facção for deposta. Prevê-se, em casos assim, o asilo de cinco anos prorrogáveis.
E o terceiro tipo é a proteção temporal, que está sendo usada no caso da Guerra da Ucrânia. A pessoa ganha o asilo na hora, mas este deverá ser renovado ano a ano, pelo máximo de três anos. Se a situação não mudar no país durante esse período, os refugiados de lá poderão ser realocados nos dois primeiros casos.
Zamora explica que há três fases de adaptação quando um refugiado chega e espera o pedido de asilo ser concedido ou negado. A fase zero dura menos de um mês e consiste em viver e comer em centros da Cruz Vermelha.
“Na fase 1, de 18 meses, nós tutelamos a pessoa, fornecendo acesso a saúde, escola, alojamento e alimentação em centros e um pequeno valor para transportes [EUR 50, cerca de R$ 264]”, explica o coordenador.
A fase 2, por outro lado, prevê o pagamento do aluguel e da alimentação diretamente para o refugiado, que poderá escolher seu apartamento e fazer suas próprias compras no supermercado. “E os ucranianos estão entrando direto na fase 2”, diz Zamora.
IVAN FINOTTI / Folhapress