BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – O maior centro de tortura da ditadura argentina se transformou em Patrimônio Mundial nesta terça-feira (19). O título foi concedido pelo Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco (braço da ONU para a educação, ciência e cultura) ao que hoje é o Museu e Espaço de Memória Esma, em Buenos Aires.
Foi a primeira vez que um local de memória foi incluído nos trabalhos da comissão, que está reunida em Riad, na Arábia Saudita, para analisar 50 inscrições e decidir quais lugares do planeta merecem esse status, até então dividido nas categorias cultural, natural e mista.
Hoje, 1.185 locais levam a alcunha de Patrimônio Mundial, 23 deles no Brasil e 11 na Argentina, sem contar os novos. Os últimos a entrarem na lista brasileira foram o sítio Burle Marx (2021) e a cidade histórica de Paraty e Ilha Grande (2019), ambos no Rio de Janeiro.
“Quero agradecer pela decisão tomada”, declarou o presidente argentino, Alberto Fernández, em um vídeo exibido na cerimônia. “A memória tem que ser mantida viva basicamente para que as más experiências não se repitam […] Para que ninguém na Argentina possa negar ou esquecer o horror que se viveu ali”, acrescentou, pontuando que neste ano o país completa 40 anos de democracia.
O conjunto de edifícios na zona norte de Buenos Aires foi construído a partir de 1928 como Escola de Mecânica da Marinha, mas, entre 1976 e 1983, funcionou também como um centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da ditadura militar. Por ali, passaram cerca de 5.000 dos 30 mil presos desaparecidos no período.
Acorrentadas, algemadas e encapuzadas, as vítimas chegavam primeiro ao porão do Casino de Oficiais, um pavilhão de três andares que concentrou grande parte da atividade repressiva. Esse também era o último local onde elas pisavam antes de desaparecerem ou serem jogadas de aviões no rio da Prata, nos chamados “voos da morte”.
O terror se concentrava no andar superior e no sótão, “Capucha” e “Capuchita”, espaços trancados onde os presos, identificados por números, eram torturados para que delatassem o paradeiro de outros perseguidos políticos. Era nesse lugar ainda que as mulheres eram estupradas.
Em outra sala minúscula e vazia, dezenas delas deram à luz seus filhos, levados antes de elas desaparecerem. Onze dessas crianças (de 37 conhecidas) recuperaram sua identidade graças às Mães da Praça de Maio, citadas pelo presidente Fernández em seu discurso de agradecimento.
Após o fim da ditadura, o local continuou funcionando como escola para suboficiais, até que, em 1988, o ex-presidente Carlos Menem, que concedeu indulto a ex-ditadores e a ex-guerrilheiros, ordenou a demolição do Casino de Oficiais para criar um “monumento para a reconciliação e a união nacional”.
Mães e parentes de desaparecidos impediram que isso ocorresse por meio de medidas judiciais, e o lugar foi desocupado pela Marinha e declarado monumento histórico nacional em 2004. Um ano antes, o Congresso argentino reabriu os processos judiciais contra ex-militares, que seguem até agora em tribunais civis –73 já foram condenados de um total de 1.159.
As obras de preservação e montagem do museu começaram em 2013. Hoje, os espaços permanecem intactos e servem de prova judicial, sendo administrados por um organismo público composto por representantes do governo nacional, da cidade de Buenos Aires e de organizações de direitos humanos.
Cerca de 150 mil pessoas, muitos estudantes, visitam o centro anualmente e participam de atividades de reflexão.
“A autenticidade, a ligação com a memória, a participação inclusiva de todas as partes interessadas, a estratégia de interpretação e educação” foram critérios destacados pelo representante do Japão no comitê da Unesco, que considerou a Esma um bom exemplo para futuras candidaturas.
De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Argentina, o país iniciou as negociações com a Unesco em 2015 e, dois anos depois, conseguiu que o local fosse incluído na lista provisória do Centro do Patrimônio Mundial.
“A nomeação é resultado de um trabalho profundo, no qual o país se envolveu ativamente no grupo de trabalho […], o que resultou nas recomendações para incluir pela primeira vez os locais de Memória no âmbito de consideração do comitê”, afirmou Marcela Losardo, embaixadora da delegação da Argentina junto à Unesco, à agência pública de notícias Telám.
ALGUNS DOS PATRIMÔNIOS MUNDIAIS DA UNESCO NO BRASIL
Patrimônio misto (cultural e natural)
Cidade Histórica de Paraty e Ilha Grande (RJ)
Patrimônio cultural
Sítio Burle Marx (RJ)
Cidade Histórica de Ouro Preto (MG)
Centro Histórico de Olinda (PE)
Centro Histórico de Salvador (BA)
Plano Piloto de Brasília (DF)
Parque Nacional da Serra da Capivara (PI)
Paisagens do Rio de Janeiro
Conjunto Moderno da Pampulha (MG)
Patrimônio natural
Parque Nacional do Iguaçu (PR)
Costa do Descobrimento (BA e ES)
Áreas Protegidas da Amazônia Central
Áreas Protegidas do Pantanal (MT e MS)
JÚLIA BARBON / Folhapress