TAIPÉ, TAIWAN (FOLHAPRESS) – No ano passado, diante dos movimentos protecionistas em seus mercados tradicionais, americano e europeu, evidenciou-se o quanto a China voltou seus navios e trens de carga para outras regiões. O maior destino das exportações não foram os EUA, que ficaram em US$ 500 bilhões, mas, pela primeira vez, o Sudeste Asiático, que marcou US$ 524 bilhões.
O foco se dirigiu também para Oriente Médio e América Latina, além de Rússia e Ásia Central, nos setores de maior tecnologia em que Pequim aposta agora. As vendas de carros elétricos chineses em 2023, segundo o analista do setor TP Huang, saltaram mais de 100% em países do Sudeste Asiático como Indonésia, Tailândia, Vietnã e Malásia. Também no Egito e Turquia (Oriente Médio), no México e Brasil (América Latina).
Para os carros chineses em geral, não só elétricos, os dois maiores mercados passaram a ser Rússia e México, com destaque também para Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (Oriente Médio), Tailândia e Filipinas (Sudeste Asiático).
Na Ásia Central, as vendas para Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão saltaram 200%. A região é um dos alvos originais da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, da sigla em inglês) lançada há uma década pela China, para desenvolver a infraestrutura de parceiros comerciais.
“Os carros chineses estão aumentando participação em todo o mercado emergente, inclusive no Brasil”, diz Huang. Segundo ele, a Associação de Fabricantes de Automóveis da China trabalha com uma projeção de que, tirando a própria China, EUA e Europa, esse mercado compre mais de 30 milhões de veículos neste ano.
“Mais importante ainda, é um mercado que vai crescer se conseguir acesso a veículos mais baratos”, acrescenta. “No Brasil, você deve ter notado como as vendas da BYD aumentaram quando o Dolphin foi disponibilizado.”
Desde 2000, as exportações entre os próprios emergentes passaram de 25% para 40% do total, segundo a Gavekal, consultoria de Hong Kong e Pequim. O dado foi ressaltado pela analista financeira Shuli Ren para apontar, na Bloomberg, a ascensão de uma “nova ordem comercial”, apartada do Ocidente e do dólar.
“Os emergentes já são mercados importadores importantes da China, inclusive o Brasil, e em muitos casos é um caminho de duas mãos”, diz Larissa Wachholz, que foi assessora especial do Ministério da Agricultura de 2019 a 2021, onde estabeleceu o Núcleo China.
Cita a entrada do país na Organização Mundial do Comércio, em 2000, como o pontapé inicial dessa “mudança na ordem”, seguido do crescimento acelerado de outros emergentes, principalmente Índia e países do Sudeste Asiático, como a Indonésia.
“Uma demonstração clara do potencial que foi adquirido pelo comércio entre os emergentes foi no caso das sanções contra a Rússia”, acrescenta. “As exportações para China e Índia mantiveram o comércio russo ativo.”
Pequim acelerou a mudança diante das medidas de EUA e Europa para dissociar ou “desarriscar” (de-risk, em inglês) suas economias através de tarifas de importação, controles de exportação e até do abandono de acordos com a China, como a recente saída da Itália da BRI, sob pressão de Washington. O quadro deve se acentuar se Donald Trump for eleito.
No Oriente Médio, além da BRI, a aproximação geopolítica com algumas das principais economias, como Arábia Saudita e Emirados, permitiu a entrada nos países de atores chineses também de tecnologia, como Huawei, Tencent e Alibaba.
“Temos de pensar na BRI como uma ampla política industrial”, diz Huang. “Você precisa tornar seu produto mais utilizável e mais barato. Isso significa construir infraestrutura 5G para maior uso de produtos eletrônicos de consumo. Significa construir frotas de transporte e portos e ajudar a construir ferrovias, para que o volume e o custo possam ser melhorados.”
No caso do Brasil, as importações de produtos da China (inclusive Hong Kong e Macau) até diminuíram, 12,4%, para US$ 53,9 bilhões. Mas as exportações bateram recorde, US$ 105,7 bilhões, e a parceria se ampliou.
A inclusão do país na tradicional turnê mundial de início de ano do chanceler Wang Yi foi tratada na imprensa chinesa como sinal do crescente vínculo bilateral, que celebra o cinquentenário de relações diplomáticas em agosto.
Pouco depois, em novembro, deve ser aberto com a presença do próprio líder Xi Jinping um megaporto chinês no Peru -que terá o Brasil como um de seus maiores clientes potenciais. Chancay, erguido ao custo de US$ 3,5 bilhões e com participação majoritária da empresa de logística chinesa Cosco, servirá de parada final da Rodovia Transoceânica que começa em São Paulo, podendo escoar commodities das regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste.
Para os produtores brasileiros, além do ganho com o menor tempo de viagem, será uma alternativa ao Canal do Panamá, um dos gargalos de transporte marítimo que vêm afetando o comércio internacional.
“O projeto reflete a visão de infraestrutura de longo prazo, característica do desenvolvimento chinês”, diz Wachholz. “Hoje em dia, a competitividade chinesa não está na mão de obra barata e sim na eficiência da sua infraestrutura.”
Para ela, Chancay é simbólica do crescimento que os chineses adotaram em seu próprio país. “No médio e longo prazo, um porto de maior eficiência será positivo para o Brasil e os países latino-americanos, principalmente vizinhos do Peru.” Avalia que alguns estados brasileiros se beneficiem mais, como aqueles da região Norte “e o grande exportador de grãos, Mato Grosso”.
O porto peruano é parte da disseminação das rotas comerciais chinesas, que abrange, mas não se limita à BRI. No Brasil, que não se vinculou à iniciativa, a China já está presente em Paranaguá, um entre mais de cem portos pelo mundo nos quais o país investe ou tem participação.
E o Porto de Vila Velha concentra as importações da BYD, devendo receber o meganavio Explorer Nº 1 neste ano. “A chave para exportar carros elétricos para a América Latina é colocar na frota navios transportadores ‘puros’ [só de automóveis] e expandir portos, para baixar o custo até as lojas”, diz Huang. “O que poderá permitir à BYD, por exemplo, precificar o Seagull [no Brasil, Dolphin Mini] em R$ 99 mil.”
O Explorer nº 1 visa também dar maior segurança ao transporte, em relação aos navios contratados. Segurança para o comércio se tornou ponto central no impulso dado por Pequim à infraestrutura mundo afora.
Com os ataques iemenitas no mar Vermelho, exportadores e importadores chineses chegaram a buscar alternativa no expresso ferroviário para a Europa, sobretudo com a aproximação do Ano-Novo chinês, em 9 de fevereiro. Com o tempo, evidenciou-se porém que as embarcações da China, assim como da Arábia Saudita e outros, não seriam alvo.
Na virada do ano, foram divulgados estudos sobre o risco de gargalos marítimos, inclusive o Estreito de Bab al Mandeb, onde se concentram os ataques iemenitas. Vários outros gargalos ameaçam diretamente a China, que trabalha alternativas preventivas.
Por exemplo, para o caso de fechamento do Estreito de Málaca, que liga o Mar da China Meridional ao Índico, na rota para Oriente Médio, África e Europa, Pequim investiu em ferrovia e porto em Mianmar, contornando o estreito para alcançar o oceano.
Os gargalos de maior risco, segundo estudo publicado pela Universidade Tsinghua, estão nos próprios mares da China Meridional e Oriental, acima e abaixo de Taiwan. Ou seja, praticamente toda a costa chinesa, com presença intermitente de navios de guerra americanos.
Além de Mianmar, Pequim tem fechado acordos com portos russos no mar do Japão, inclusive Vladivostok, e até fabricado mais navios quebra-gelo, que são vistos como alternativa para uma eventual rota comercial pelo Ártico, defendida pela Rússia.
Para Huang, “do ponto de vista de ‘desarriscar’ a própria China do mercado americano”, a estratégia tem sido bem-sucedida. “É claro que isso vem não apenas com infraestrutura de transporte, mas também com outras formas de infraestrutura, como comércio eletrônico, telecomunicações e talvez inteligência artificial e medicamentos, no futuro.”
NELSON DE SÁ / Folhapress