SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O espelho instalado na entrada da sala expositiva de “Narciso: A Beleza Refletida” permite antever um dos objetivos da mostra, em cartaz no Farol Santander, localizado no centro da capital paulista.
Com cem autorretratos de artistas como Tunga, Tomie Ohtake, Beatriz Milhazes, Emanoel Araújo e Romero Britto, a exposição examina o fascínio que a própria imagem desperta nas pessoas. Fascínio, aliás, que pode se transformar facilmente em perdição.
Essa dualidade está presente já no título do projeto. Ele faz referência ao mito grego que narra a história de Narciso, rapaz de beleza inigualável que se apaixona por seu reflexo projetado na água. A paixão foi tão fulminante que ele definhou por não conseguir fazer outra coisa senão olhar para si.
“O projeto começa com esse mito por ele ser um símbolo no mundo ocidental do culto à imagem”, diz Helena Severo, que assina a curadoria da exposição ao lado de Maria Eduarda Marques. Ela explica que o acervo começou a ganhar corpo em 1997, quando a produtora de cinema Lúcia Almeida Braga e o arquiteto Márcio Rebello encomendaram os trabalhos.
Todos os cem autorretratos da mostra fazem parte desse acervo. A exceção é uma escultura de mármore do artista Vik Muniz.
Exibida pela primeira vez, a obra mostra o artista caracterizado como Puck, personagem da peça “Sonho de uma Noite de Verão”, de William Shakespeare.
A curadora explica que o interesse pela própria imagem não é um fenômeno contemporâneo. “No Egito antigo, os autorretratos eram uma prática muito comum. Só que eles foram quase abolidos durante a Idade Média, período dominado por questões religiosas.”
Ela diz que esse gênero foi resgatado durante o Renascimento, quando o homem ganhou centralidade na arte. De lá para cá, a produção de autorretratos se exacerbou com o surgimento da fotografia e dos smartphones.
A exposição, no entanto, não julga esse fascínio pela autoimagem. Tampouco pretende investigar se a sociedade anda mais ensimesmada do que no passado. A ideia, na verdade, é usar os autorretratos para revelar a face do Brasil no pós-ditadura.
“Apesar de vários artistas terem vivido o regime, é uma paleta cromática bem anos 1980 e 1990, que remete a um Brasil mais positivo”, diz Marcello Dantas, que assina a direção artística da mostra.
De fato, muitas obras têm tons quentes e multicoloridos, como se fossem um contraponto à frieza e à monocromia dos retratos falados da ditadura militar.
Exemplo disso é o autorretrato de Tomie Ohtake. A artista tingiu a maior parte da tela com um vermelho sangue e desenhou no centro um quadrado branco dentro do qual há uma esfera.
Outros artistas também representaram a si mesmos de forma abstrata, como é o caso de Maurício Bentes. O escultor fez seu trabalho em uma chapa de ferro em que há grandes manchas amarelas causadas pela ferrugem.
De certa forma, o processo contínuo de oxidação faz com que a peça nunca esteja completamente finalizada. “É uma obra viva e dinâmica que vai se transformando”, diz Dantas.
Há, porém, autorretratos figurativos, como os dos artistas Luiz Zerbini, João Câmara e Katie Van Scherpenberg.
A mostra também tem uma seção imersiva, em que o público entra em cabines e tem a possibilidade de fazer selfies, prática que se tornou praticamente uma obsessão em tempos de redes sociais.
“Não vejo isso de forma negativa. No passado, a fotografia era para poucos, agora ela é feita por muitos”, diz Dantas, acrescentando que hoje as pessoas ganharam autonomia sobre o modo como querem ser representadas.
Isso porque não precisam mais da mediação de profissionais como pintores e fotógrafos. “Hoje, são elas que contam a própria história do jeito que quiserem, com as metáforas e as cores que quiserem.”
O autorretrato é facilitado não só pela tecnologia, mas também pela arquitetura espelhada dos grandes centros urbanos. “O espelho era um objeto que ficava em casa, em espaços privados. Hoje, virou uma coisa sobre a sociedade inteira”, diz Dantas. “Todo mundo quer enfiar espelho em todos os lugares.”
MATHEUS ROCHA / Folhapress