SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em pouco mais de uma década, Emilce Beeguier, 33, viu mudar a comunidade de Fvta Xayen, onde nasceu, nas proximidades da cidade argentina de Añelo (1.014 km de Buenos Aires). O município é considerado o coração de Vaca Muerta, uma massiva formação geológica que abriga a segunda maior reserva de gás de xisto do mundo e também é a casa ancestral do povo mapuche.
“Antes era tranquilo. Não se ouvia nem um carro passando. Agora, com o movimento na estrada, não se pode atravessar um lado a outro como eu fazia quando era criança, por exemplo”, conta a kona (“jovem militante”, em mapuche).
O vaivém de caminhões na região se deve à exploração de combustíveis feita por “fracking”, ou fraturamento hidráulico, iniciada em 2013. A técnica usa milhões de litros de água misturados a areia e a reagentes químicos para quebrar a rocha de xisto no subsolo e extrair petróleo e gás.
Vaca Muerta colocou a Argentina entre os maiores produtores do mundo de gás e petróleo não convencionais (aqueles extraídos por meio do “fracking”) e sucessivos governos vêm investindo na exploração na região.
Na terça-feira (20), entrou em operação o primeiro trecho do gasoduto Néstor Kirchner, ligando Vaca Muerta até a província de Buenos Aires. O presidente Alberto Fernández aposta na obra para aliviar a crise econômica que assola o país, já que poderá economizar nas importações e reduzir a falta de dólares que impulsiona a inflação.
No final de abril, Beeguier viajou de avião pela primeira vez para evento promovido pela ONG 350.org, para contar a comunidades impactadas por projetos de energia no Maranhão o que a chegada do “fracking” significou para Vaca Muerta.
Os caminhões com insumos e rejeitos dos poços circulam por estradas na área usada como pastagem e, por isso, afetam diretamente a criação de animais, atividade tradicional dos mapuches. “Eles são atropelados. Temos que estar o tempo todo contendo os animais para que não vão aonde sempre estiveram”, conta a ativista.
Ela relata que as 17 famílias da comunidade passaram a sofrer os impactos logo que o “fracking” foi aprovado. “Começaram a chegar aos territórios pessoas que não conhecíamos, para fazer as fraturas, que prejudicaram a água e, eventualmente, a contaminaram.”
De acordo com relatório da consultoria Ricsa, em junho de 2021, 15 petroleiras operavam 1.145 poços de petróleo e gás em Vaca Muerta, principalmente na província de Neuquén -onde fica o território mapuche. A maior parte dos poços (67%) é da estatal YPF, mas dezenas de outros pertencem a multinacionais como ExxonMobil, Chevron, Shell e Total.
A YPF foi procurada para comentar as reclamações dos mapuches, mas não respondeu até a publicação da reportagem.
A matriz energética argentina é dominada pelo gás natural (55%) e o petróleo (33%). Segundo a secretária de Energia do país, Flavia Royón, 47% do petróleo e 41% do gás da Argentina são produzidos em Vaca Muerta.
Sobre as críticas ambientais ao novo gasoduto, Royon afirmou à Folha que “não há nenhum questionamento ao projeto”.
COMO FUNCIONA A EXPLORAÇÃO DE ÓLEO E GÁS POR ‘FRACKING’
Todo petróleo e gás do mundo fica distribuído em pequenas gotas ou pequenos bolsões de gás debaixo da superfície.
No caso dos poços chamados de convencionais, as reservas ficam em solo de mais fácil acesso, como areia ou argila.
“Mas algumas dessas reservas estão em rochas muito duras, então nem o petróleo nem o gás conseguem se movimentar lá dentro”, diz o físico Shigueo Watanabe Junior. Estas são as formações não convencionais ou reservas de xisto, que só podem ser exploradas por meio do “fracking”.
“É uma técnica para fraturar a rocha. Como você não pode usar explosivos lá embaixo, porque queimaria todo o petróleo, usa-se água em altíssima pressão, misturada com alguns reagentes químicos que ajudam a dissolver uma parte da rocha”, explica.
Com as fissuras, o óleo e o gás escoam para um tubo e são levados para a superfície.
Como rejeito, há milhões de litros de fluído usados no fraturamento, que são reinseridos no subsolo ou descartados em outros lugares -em reservatórios ou, em alguns casos, de maneira irregular, na beira de estradas, em rios e em plantações.
TREMORES DE TERRA E FALTA DE ÁGUA
O “fracking” é foco de controvérsias no mundo todo devido ao seu impacto socioambiental e climático.
“Quando as fraturas são feitas no subsolo, acontecem terremotos e tremores de terra na comunidade que está ao redor”, conta o comunicador mapuche Fernando Barraza. “As casas estão rachando.”
Em Vaca Muerta, um estudo da Associação Geológica Argentina identificou “aumento notório” nos tremores com intensidade média a moderada entre 2015 e 2020. No período, foram sentidos 206 sismos na zona central e oriental da província de Neuquén, onde, até então, se registravam “eventos isolados e de baixa magnitude”.
“Houve um discurso muito convincente de que [o ‘fracking’] ia trazer empregos, progresso e fundamentalmente que não tinha impacto ambiental, que era uma atividade limpa comparada à extração tradicional de petróleo. Mas o que aconteceu foi exatamente o oposto”, afirma Barraza.
Ele chama o discurso de “eldoradista”, em referência à lendária cidade feita de ouro e à promessa de riqueza sem limites, e diz que não houve consulta aos povos tradicionais antes das atividades.
O líder mapuche também denuncia dificuldades para o acesso à água. “Os lençóis freáticos começaram a ficar contaminados e, acima de tudo, algo que nenhuma empresa ou governo que faz ‘fracking’ fala: [as petroleiras] levam toda a água”, diz. “Eles precisam de milhões de litros de água. Leitos de rios foram desviados e rios inteiros secaram.”
BOMBA CLIMÁTICA
Nicole Figueiredo, diretora-executiva da Arayara, organização que atua para promover a transição energética justa, explica que, em outros lugares do mundo, estudos já associaram o “fracking” à contaminação da água, gerando problemas de saúde, e ao rebaixamento do lençol freático.
Ela ressalta ainda que Vaca Muerta é uma “bomba de carbono”, com emissões potenciais de gases de efeito estufa que podem chegar a 5,2 gigatoneladas. “O ‘fracking’ tem impactos locais, mas também um impacto climático muito significativo.”
A extração de gás natural está associada à liberação de metano na atmosfera -segundo estimativas da Agência Internacional de Energia, o metano é responsável por cerca de 30% do aumento na temperatura do planeta.
Ainda segundo Agência Internacional de Energia, para zerar as emissões líquidas de carbono até 2050, é essencial que não sejam feitos investimentos em novos projetos de combustíveis fósseis. A meta é um dos passos para cumprir o Acordo de Paris e limitar o aquecimento global em 1,5°C.
O “fracking” é banido em alguns países europeus, como Espanha, França e Reino Unido (no ano passado, uma tentativa de reverter a proibição levou à queda da primeira-ministra Liz Truss).
No Brasil, ainda não há esse tipo de exploração, porém, Paraná e Santa Catarina, onde fica uma das maiores bacias potenciais de gás de xisto do país, já têm leis proibindo a prática. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, também há reservas potenciais no Maranhão, Piauí, Amazonas e Pará.
Em janeiro, o presidente Lula (PT) sinalizou que o BNDES financiaria o projeto do gasoduto Néstor Kirchner, mas até agora isso não se concretizou.
A repórter viajou a São Luís para acompanhar o evento Boas Energias – Maranhão a convite da ONG 350.org.
JÉSSICA MAES / Folhapress