Fábrica símbolo do Brasil do século 19 vive entre a glória e o abandono

IPERÓ, SP (FOLHAPRESS) – Realizada pela primeira vez em 1851, em Londres, a Exposição Mundial era uma oportunidade para os países anunciarem seus produtos e criações tecnológicas para o mercado externo. Em 1873, o Brasil esteve na grande feira de Viena com alguns objetivos, entre eles, o de afastar a fama de lugar exótico para vender uma imagem de modernidade.

Levou para a vitrine austríaca a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, que havia sido fundada por dom João 6º em 1810 na região de Sorocaba, no interior paulista.

“Em São Paulo, existe a mais importante fábrica de ferro da América meridional. Este estabelecimento, criado e mantido pelo Estado, acha-se atualmente com elementos seguros de prosperidade”, dizia um texto preparado pelo governo monárquico para a exposição, como registrou o historiador Nilton Pereira dos Santos.

Havia, claro, um tom ufanista na apresentação de Ipanema para o público estrangeiro, mas aquele era, de fato, um projeto ambicioso que deixava o Brasil próximo da tecnologia siderúrgica utilizada na Europa.

Além de considerada pelos estudiosos o berço da siderurgia no Brasil, foi a única indústria desse ramo que funcionou praticamente de modo ininterrupto no país no século 19 –foi desativada em 1895, reabriu em 1917 e fechou definitivamente nove anos depois. Ao longo desses dois períodos, produziu milhares de toneladas de ferro fundido e forjado, entre moendas, canhões, ferramentas agrícolas, arames e pregos.

“Ipanema deu uma grande contribuição para a indústria da cana, produzindo moendas e outras engrenagens. Mais tarde, foi importante para a construção das ferrovias”, diz Fernando Landgraf, professor de metalurgia da Escola Politécnica da USP.

Era inevitável, portanto, que a fábrica atraísse as atenções. Dom Pedro 2º foi quatro vezes à siderúrgica, também visitada pela princesa Isabel e por José Bonifácio. O pintor francês Jean-Baptiste Debret foi um dos artistas que a retrataram.

Hoje em dia, as construções remanescentes da fábrica estão no território mantido pela Floresta Nacional (Flona) de Ipanema, cuja administração responde ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), do governo federal. Antes parte de Sorocaba, a área hoje pertence ao município de Iperó (SP), a cerca de uma hora e meia da capital paulista.

Os antigos prédios estão bem próximos uns dos outros, é possível conhecê-los ao longo de uma caminhada breve. Como a reportagem pôde constatar em visita recente, a preservação é desigual. Os prédios históricos vão da imagem viva do século 19 ao abandono.

Alguns locais foram cuidadosamente restaurados nas últimas décadas e impressionam o visitante, como a imponente Casa das Armas Brancas, chamada originalmente de oficina de arames, pregos e laminados, como conta Luciano Regalado, analista ambiental e responsável pelo centro de memória de Ipanema.

Construída em alvenaria de pedra e cal ao longo dos anos 1880, tem um pé-direito que alcança até 16 metros em sua nave central. Um reparo ou outro seriam bem-vindos, mas o estado geral dessa relíquia arquitetônica é bom.

Construída em 1811, a sede administrativa da indústria, também usada como residência do diretor, estava em péssimas condições nos anos 1990, mas foi restaurada na década seguinte. Faltam melhorias no sistema elétrico, mas o quadro geral é satisfatório.

O espaço, onde costumam acontecer exposições, está sendo usado temporariamente como centro de visitantes.

Por outro lado, é bastante crítica a situação da segunda oficina de refino, onde eram produzidos canhões e outras munições. No prédio erguido no período em que o engenheiro alemão João Bloem administrou a fábrica, entre 1835 e 1842, existem danos nas paredes e nas colunas, que põem toda a estrutura em risco. Além disso, entulhos ocupam os ambientes internos, e as plantas dominam os telhados.

Na visita da reportagem, uma família de urubus havia montado sua casa em um dos cantos do lugar. Também é preocupante o estado da terceira oficina de restauro.

A precariedade observada nesses dois prédios é reflexo de um descaso que prevaleceu durante a maior parte do século 20. Depois que a fábrica deixou de funcionar, as construções foram geridas inicialmente pelo Ministério da Guerra e depois pela pasta da Agricultura.

“Não houve preocupação com os sítios históricos depois que Ipanema foi para administração desses ministérios. Além disso, a fábrica foi um local marcante do Brasil Império, e a República, em sua fase inicial, buscou apagar o mérito das construções do período imperial. Vários prédios daqui foram descaracterizados”, diz Fernando Tizianel, chefe da Flona Ipanema.

O núcleo histórico foi tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (hoje Iphan) em 1964 e, três anos depois, alguns prédios como a Casa das Armas Brancas foram, enfim, restaurados. Outras construções, porém, ficaram à margem de iniciativas de recuperação, caso das oficinas de refino, ou sofreram intervenções insuficientes, como os altos fornos.

Responsáveis pela fundição do minério de ferro, os altos fornos são a face mais conhecida de uma siderúrgica devido ao característico formato cilíndrico. Restam duas unidades em Ipanema: os fornos geminados Varnhagen (1818), uma homenagem ao alemão Friedrich Varnhagen, o segundo administrador da fábrica, e o Alto Forno Mursa (1878), uma referência ao gaúcho Joaquim de Souza Mursa, que comandou a indústria décadas depois.

Os fornos estão distantes da degradação vista na oficina de restauro, mas também revelam fragilidades estruturais, apesar de uma intervenção realizada em 2005.

Também faltam cuidados mais simples, como o corte de plantas que crescem entre as pedras, problema que tende a ser amenizado com a contratação neste mês de dezembro de quatro agentes temporários, que vão se dedicar à zeladoria do núcleo histórico.

Segundo Tizianel, um projeto para recuperação e restauração dos fornos já foi aprovado pelo Iphan, e os recursos para o início das obras devem ser liberados no ano que vem. De acordo com ele, o dinheiro, em torno de R$ 650 mil, virá na forma de compensação ambiental, uma espécie de indenização paga por empresas que causaram danos à natureza, como desmatamento.

Outro prédio de valor histórico é a Casa da Guarda, aberta em 1811 como um depósito de minérios. É onde fica o majestoso pórtico de ferro que celebra a maioridade de dom Pedro 2º.

A construção foi erguida a poucos metros da represa, que fornecia a energia necessária para o funcionamento da fábrica. Por isso, infiltrações são frequentes na Casa da Guarda, com marcas de umidade nas paredes. Além disso, o madeiramento do telhado está parcialmente deteriorado.

Prédios que exigem ações emergenciais de conservação, como as oficinas de refino e a Casa da Guarda, impõem desafios à administração do local. Como todas as unidades de conservação federal do ICMBio, Ipanema foi pensada sobretudo como reserva ambiental (no caso, um pedaço de mata atlântica com mais de 5.300 hectares), deixando o tesouro histórico em segundo plano.

“Não existe uma rubrica dentro do orçamento do ICMBio voltada para o patrimônio histórico”, afirma Tizianel.

Além das compensações ambientais, a saída, ele explica, tem sido buscar parcerias de outros órgãos do governo e também da iniciativa privada. Nesse sentido, o Iphan ocupa papel central.

Em nota enviada à Folha de S.Paulo, o instituto diz que “está em processo final de formalização uma proposta de projeto de pesquisa, a ser desenvolvida pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e financiada pelo Iphan”.

A iniciativa “visa requalificar os remanescentes da Fábrica de Ferro São João de Ipanema e promover o resgate histórico dos processos de produção a fim de elaborar diretrizes para o desenvolvimento do turismo cultural”. Deve começar em janeiro de 2024, com duração de um ano.

Ainda segundo a nota, a parceria entre o instituto e a universidade não prevê “obras neste momento, e sim estudos e projetos. Com esse material em mãos, Iphan, ICMBio e os demais entes envolvidos decidirão os próximos passos (obras de restauração/conservação necessárias)”.

Do conjunto tombado, três prédios serão avaliados inicialmente pela Ufscar: a Casa da Guarda e a segunda e a terceira oficinas de refino.

O futuro de Ipanema depende, enfim, do cuidado com o passado.

IPANEMA TINHA 162 ESCRAVIZADOS EM FUNÇÕES DIVERSAS

Em 1857, a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema chegou a ter 162 escravizados. Os dados são de um levantamento apresentado em 1871 pela Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, sob dom Pedro 2º, e lembrado pelo historiador Mário Danieli Neto.

Em 1870, último ano apontado pelo documento e menos de duas décadas antes da Abolição, eram 67 escravizados.

Os homens se dividiam em mestres de fundição, serralheiros, carvoeiros, moldadores, refinadores, pedreiros e carpinteiros. Entre as funções destinadas às mulheres, estavam a agricultura, a cozinha, a costura e a realização de partos.

Os escravizados provavelmente se encarregavam da maior parte do trabalho, segundo Danieli Neto, mas Ipanema também contava com os chamados “africanos livres”.

NAIEF HADDAD / Folhapress

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