Falar mal do Brasil não é mais legal, diz Manuela Dias, sobre remake de ‘Vale Tudo’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Manuela Dias não esconde a vontade de matar Odete Roitman ao posar para o ensaio de sua primeira entrevista sobre o remake de “Vale Tudo”, que ela está escrevendo há um ano e deve estrear em março do ano que vem na Globo.

Mas a morte da vilã talvez não seja só literal. Questionada se a personagem seguirá dizendo o que hoje seria imperdoável pela patrulha do politicamente correto, a autora afirma que estamos cansados de ouvir falar mal do Brasil.

“‘Vale Tudo’ foi a novela da volta da democracia, e naquele momento falar mal do Brasil, ou poder falar mal, era resistência, era revolucionário, era novo. Hoje não é mais. Estamos saturados. O novo é encontrar maneiras de transformação”, diz, por vídeochamada.

Com a perversidade do país como cenário, Odete é a vilã que circunda a história de Maria de Fátima -interpretada por Bella Campos-, que não aceita ser pobre como a mãe, Raquel -papel de Taís Araújo-, e está disposta a tudo em busca da ascensão social.

Enquanto Odete dizia que o Brasil é “uma mistura de raças que não deu certo”, que a “solução para a violência é a pena de morte”, que “quanto menos ouvir falar português, melhor”, Dias afirma que “ama o Brasil”, que “o autor também fala através de seus personagens” e que “falar que o Brasil é uma porcaria não traz nada”.

A autora teme dizer que o remake terá um viés construtivo, patriótico, mas afirma que, “perto da novela original, será”. Também prefere não responder se acha que o Brasil melhorou ou piorou nos últimos 36 anos, desde a estreia da versão original, escrita por Gilberto Braga, morto em 2021, mas se considera uma “otimista inconteste”.

Dias, que também escreveu a minissérie “Justiça” e a novela “Amor de Mãe”, estende o otimismo à escalação do elenco, sobre o qual não pode falar ainda, mas que teve um vaivém de atores nos últimos meses. A Globo não conta quem interpretará Odete, mas corre nos bastidores que será Débora Bloch, depois da saída de Fernanda Torres, que trabalha na divulgação internacional de seu filme “Ainda Estou Aqui”, em busca de uma indicação ao Oscar.

“É legal a mobilização do público, mas quem quer ver Beatriz Segall (1926-2018) como Odete pode ver no Globoplay. Não faz sentido mimetizar o original”, diz.

Na Globo, há muitos autores experientes, com um portfólio mais extenso que o seu em novelas. O que fez de você a escolha ideal para ‘Vale Tudo’?

Não sei o que a Globo pensou. Me ofereceram a oportunidade, enlouqueci, porque é uma história icônica, aceitei e comecei a trabalhar -revi a novela toda, li estudos acadêmicos. Deve ter um ano.

Dois dos autores principais da versão original morreram, Gilberto Braga e Leonor Bassères, mas Aguinaldo Silva está vivo. Você conversou com ele?

Sérgio Rodrigues, que fez o original, está trabalhando comigo. É um colaborador experiente, da velha guarda da Globo. Mas muita coisa mudou. É legal mais por curiosidade sobre os bastidores do original do que pelo remake.

PERGUNTA – Quantos capítulos já estão prontos?

MANUELA DIAS – Tenho um terço pronto. Vão ser 172 capítulos, a princípio.

P. – O original tinha 204. Por que houve uma redução?

MD – Porque muita coisa mudou. Temos a sensação de que a agenda social não avança, mas avançou muito. Alcoolismo não era considerado doença, então Heleninha Roitman era vista como uma pinguça que bebia porque tinha vontade. O machismo era ainda pior, então todos os personagens homens batiam ou ameaçavam bater nas mulheres. O original tinha dois personagens interpretados por negros -um ladrão e uma funcionária doméstica. E não tinha internet. Hoje, qualquer problema é mais rápido de resolver, e isso impacta o tamanho da narrativa.

P. – Por falar em agenda social, Odete Roitman diz muita coisa politicamente incorreta. O que ainda é possível que ela diga e o que vocês cortaram?

MD – Odete seguirá sendo uma vilã, mas sua vilania está muito ligada ao momento. ‘Vale Tudo’ foi a novela da volta da democracia, e naquele momento falar mal do Brasil, ou poder falar mal, era resistência, era revolucionário, era novo. Hoje não é mais. A gente está saturado disso. O novo é encontrar maneiras de transformação. Odete não aponta caminhos, mas será diferente. Não só ela. Torcíamos para Heleninha beber, dançar e quebrar tudo. Hoje, sabendo que ela é uma doente, vamos torcer?

Mesmo com nossos embates, estamos muito mais juntos do que parece. Existe um espaço que une as pessoas de direita e de esquerda, de diversos grupos identitários, e eu busco esse espaço. Claro que também quero incomodar. Mas a gente precisa saber que 68% dos brasileiros entendem que família não é pai, mãe e filho, mas um núcleo unido por amor, ou seja, relações homoafetivas também. O Brasil é um país antiarmamentista, mesmo com a alta da direita. As mulheres entendem que vão acabar mortas em casa. Me interesso por um Brasil mais unido e busco isso.

P. – Mas o que a personagem pode ou não falar hoje?

MD – Não é questão de poder. Gilberto Braga, com Odete, estava extrapolando a válvula de escape de poder criticar o Brasil exacerbadamente. Hoje, provocar os mesmos efeitos não implica usar os mesmos recursos. Odete era julgada por ser sexualmente ativa aos 60. E hoje? Não estou dizendo que ela vai ser feminista, mas são diferenças.

P. – Odete representa o conservadorismo, que tem crescido. Dizer que deveríamos cortar a mão de um ladrão não causa espanto em muita gente. Será que temos mais ou menos pessoas como Odete hoje?

MD – Eu amo o Brasil. É claro que tenho críticas ao Brasil, mas não sou Odete, então minhas críticas são construtivas. O autor também fala através de seus personagens, e sinto que falar que o Brasil é uma porcaria não traz nada hoje em dia.

P. – Você vai propor uma visão mais construtiva do Brasil?

MD – Como jornalista que também sou, me dá medo dizer que ‘Vale Tudo’ vai ser construtivo. Não vai. Agora, perto da novela original, será. Apontar defeitos do Brasil era uma subversão. Não é mais. Não é sobre o que é construtivo ou depreciativo. É sobre o que é subversivo. Com essa postura hipercrítica, Gilberto estava mostrando a cara do Brasil naquele momento. Mas a cara do Brasil mudou, então ela não faz mais sentido.

P. – ‘Vale Tudo’ não era uma crítica a José Sarney, mas cristalizou a desilusão do povo com suas crises de inflação e corrupção. Você tem receio de que o remake possa ser uma catarse de insatisfação contra o governo atual?

MD – Não. É a história de uma aposta entre mãe e filha. Elas apostam se é possível se dar bem sendo honesto no Brasil. A novela vai acontecer mais dentro dela.

‘Vale Tudo’ foi a última novela a ser submetida ao crivo da censura e teve cenas cortadas. Você vê, na cobrança pelo politicamente correto, uma forma de censura?

Penso todo o tempo no que estou dizendo, mas não pelo medo do cancelamento. Falar com 40 milhões de pessoas exige responsabilidade. Uso esse espaço da forma mais pró-ativa possível, porque também escrevo para mudar o mundo e mostrar padrões de comportamento éticos e morais que possam facilitar as nossas relações.

P. – Algumas mudanças já são esperadas. É claro que Maria de Fátima não vai mais querer ser modelo, mas influenciadora digital. O que mais, de importante, você mudou?

MD – Poderia ficar o dia inteiro contando, mas destacaria que, vivendo um colapso climático que a gente não vivia naquela época, entendemos de maneira diferente os voos particulares, tão presentes na história, então Afonso vai ser uma pessoa ligada à governança ambiental. Ele tem uma opinião contrária a esses voos. Outra mudança é que a geração da Fátima não lida bem com a desigualdade. Os excluídos se organizaram e querem ser felizes. A geração dela começa a trabalhar num momento em que o capitalismo está em xeque.

P. – Vamos falar de elenco. Quem vai fazer Odete?

MD – Não posso dizer.

P – Chamaram alguém do elenco original?

MD – Não. Será diferente.

P. – Qual é o poder de decisão do autor em relação à escalação?

MD – Quem convida os atores somos eu e o diretor, mas com aprovação da Globo. E tudo é adaptado. Como uma otimista inconteste, acho que tudo se encaminha para o melhor. Não posso dar detalhes, porque não são decisões só minhas, mas sabe quando você queria muito namorar alguém, mas começa a namorar outra pessoa e diz ‘nossa, é esta que eu realmente queria’? É isso.

P. – E a trilha sonora?

MD – A ideia é usar a mesma música, ‘Brasil’, mas não o mesmo fonograma. Estamos decidindo quem vai regravar.

P. – Hoje uma novela de sucesso registra não mais do que 30 pontos no Ibope. ‘Vale Tudo’ teve um pico de 89 pontos. Para contornar a crise de audiência, os remakes viraram uma estratégia central da Globo. Como você vê essa aposta?

MD – Faz parte da natureza das histórias serem recontadas, desde a nossa casa, quando a gente faz uma coisa engraçada e a família lembra sempre, até a ‘Ilíada’. E a história muda conforme a sociedade da época.

P. – A sociedade é o pilar central de ‘Vale Tudo’. Quer dizer que este remake vai ser mais diferente daqueles que temos visto?

MD – Não acho que o pilar de ‘Vale Tudo’ seja a sociedade. O pilar é uma aposta entre mãe e filha. Não criei ou matei personagens, mas acho que, sim, será mais diferente do que temos visto. Vão ter falas e bordões, como ‘eu não transo violência’, ‘bota um mambo, DJ’, mas são pontuais. Não vai dar para pôr uma cena lado a lado e exibir junto pela semelhança.

P. – Muita gente diz que não é possível refazer ‘Vale Tudo’. Por que você diria que este remake é, sim, uma boa ideia?

MD – É uma história brilhante, e histórias brilhantes merecem ser recontadas. É legal essa mobilização em torno da novela, mas quem quer ver Beatriz Segall como Odete pode ver no Globoplay. Não faria sentido mimetizar o original, porque ele pode ser revisto. Esse debate dá medo, mas é a prova de que as novelas não estão acabando.

RAIO-X | MANUELA DIAS, 47

É uma autora brasileira. Escreveu uma série de programas na Globo, onde trabalha há 25 anos, desde os de auditório até os de humor. Estreou na dramaturgia autoral em 2016, com a minissérie ‘Ligações Perigosas’, fez a minissérie ‘Justiça’, indicada ao Emmy Internacional, e a novela ‘Amor de Mãe’

PEDRO MARTINS / Folhapress

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