SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Falta de informação, estigma e acesso desigual são barreiras que limitam o alcance da Prep (profilaxia pré-exposição) no Brasil. O medicamento, que previne a infecção pelo HIV, é distribuído pelo SUS (Sistema Único de Saúde) há seis anos e tem 80 mil usuários ativos em todo o país.
Atualmente o Brasil vive uma epidemia estabilizada de Aids, com 36.753 novos casos da doença registrados em 2022, dado mais recente. Em municípios onde foi amplamente adotada como política pública, a profilaxia mostra bons resultados.
É o caso de São Paulo, que hoje concentra 25% dos usuários cadastrados pelo Ministério da Saúde. De 2016 a 2022, os casos de Aids foram reduzidos em 45% na cidade. Entre outras estratégias, a Prep é apontada como fundamental para o resultado.
O método, que consiste em tomar diariamente uma pílula com substâncias que impedem a replicação do vírus em caso de exposição, é indicado para pessoas com mais de 15 anos, com peso corporal acima de 35 kg, e que tenham risco aumentado de infecção pelo HIV.
Segundo o infectologista Álvaro da Costa, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, esse contexto de risco abrange qualquer pessoa que faça sexo com múltiplos parceiros e não use camisinha em toda relação. “Aquele conceito que a gente tinha, de que a Prep só é para grupo de risco e populações mais vulneráveis, caiu”, diz o médico, que ressalta a importância do uso combinado com outros métodos preventivos.
“As pessoas ainda enxergam a camisinha como a única estratégia de prevenção, sendo que vários países do mundo e a própria OMS [Organização Mundial da Saúde] colocam a Prep como parte crucial da prevenção do HIV”, afirma Costa, que aponta o alcance limitado do medicamento como desafio das autoridades de saúde brasileiras.
Dados do Ministério da Saúde mostram que a maior parte dos usuários da profilaxia é composta por homens que fazem sexo com outros homens (82%), em geral brancos (55%) e com alta escolaridade (72%). As mulheres cisgênero são apenas 6% dos usuários, enquanto as mulheres trans são 3%.
Para a diretora do Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) no Brasil, Claudia Velasquez, o medo de julgamento ou discriminação é o que afasta muitas pessoas do método de prevenção combinada, “especialmente quando considerados grupos sociais mais específicos, como pessoas trans, por exemplo”.
“É preciso investir em mais ações de informação e comunicação voltadas para a população em geral e adaptadas a grupos específicos, como jovens, pessoas trans, população negra, mulheres cis, ao mesmo tempo em que se garante uma ampla disponibilidade da Prep pelo SUS, feita com zero discriminação”, afirma Velasquez.
Barreiras estruturais também dificultam o acesso ao medicamento em diferentes regiões do país -hoje, 58% dos usuários estão no Sudeste. Com a oferta concentrada sobretudo em grandes centros populacionais, a Prep tem alcance reduzido em áreas rurais ou periféricas, por exemplo.
Morador de Quixabeira (295 km de Salvador), no interior da Bahia, o biomédico Ubiratan Rodrigues, 24, planeja iniciar o tratamento há alguns anos, mas os serviços de saúde da região não distribuem o medicamento.
“O meu plano é buscar no CTA [Centro de Testagem e Aconselhamento] em Salvador em algum momento que eu estiver na cidade”, diz ele, que prevê dificuldades para manter a continuidade da terapia, já que além de longa, a viagem é cara. “Cada passagem custa R$ 110 reais, então vai ser um desafio.”
Procurado, o Governo da Bahia disse em nota que está comprometido com a ampliação e interiorização da oferta de Prep no estado.
Atualmente, o Brasil tem 918 unidades de saúde com oferta do medicamento, mas que estão distribuídas de maneira irregular no território. O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, concentra 205 serviços do tipo, sendo que 80% estão na capital -é a unidade da federação com maior número de unidades dispensadoras do medicamento.
Em seguida no ranking vêm São Paulo (201 serviços) e Minas Gerais (57 serviços). Juntos, os três estados reúnem mais da metade dos serviços de distribuição da Prep em todo o país.
O nível de oferta no Sudeste brasileiro contrasta com a realidade da maioria dos estados do Norte e Nordeste, onde os serviços são menores em número e em abrangência geográfica.
No Tocantins, o medicamento é distribuído em apenas dois serviços de saúde -na capital Palmas e em Araguaína, no norte do estado.
Segundo dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), vinculado ao Ministério da Saúde, o estado registrou 230 casos novos de Aids em 2022, retornando ao patamar de 2018. Foi o segundo ano consecutivo de alta.
“A descentralização da Prep é imprescindível no nosso estado”, afirma o reverendo Geraldo Magela, coordenador da Casa A+, serviço de acolhimento, testagem e orientação a pacientes com HIV em Palmas.
No ano passado, cerca de 1.200 pessoas foram atendidas pelo equipamento. Segundo Magela, a falta de divulgação sobre o método preventivo aprofunda ainda mais a desigualdade no acesso. “A maioria das pessoas que atendemos alega desconhecimento sobre essa ferramenta”, diz ele. Atualmente, Tocantins tem 220 usuários ativos de Prep.
Por meio de nota, a Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins disse que busca expandir a oferta para as cidades de Porto Nacional, Gurupi e Paraíso.
Problemas relacionados à gestão dos equipamentos de saúde também limitam o acesso da população à profilaxia e criam filas para o atendimento. Hoje, a Prep pode ser receitada por médicos, enfermeiros e farmacêuticos, mas muitos serviços de saúde ainda restringem a prescrição aos profissionais da medicina.
“A divulgação dessa informação é fundamental para que o serviço de saúde que tenha médico só uma vez por semana possa fazer a dispensação da Prep todos os dias, se tiver um profissional de farmácia ou enfermagem”, afirma Draurio Barreira, coordenador do Dathi (Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis) do Ministério da Saúde.
Ele diz que a pasta quer habilitar 400 novas unidades para a dispensação do medicamento e que mantém diálogo com gestores para viabilizar essa expansão. Em número de usuários, o Dathi tem a meta de aumentar em 140% o alcance da profilaxia até o fim de 2027.
“A gente tem todas as ferramentas biomédicas disponíveis para detecção, profilaxia e tratamento do HIV/Aids. O problema é que a gente não tem o amplo acesso da população mais vulnerabilizada a essas ferramentas”, afirma Barreira.
Em fevereiro, o atual governo definiu cem municípios prioritários para ações de controle da Aids. O Brasil tem a meta de eliminar a doença como problema de saúde pública até 2030. Na lista, há nove cidades que até hoje não têm oferta de Prep.
“A partir do momento em que você consegue ofertar três vezes mais profilaxia do que os casos novos que você detecta de HIV, você passa a ter uma tendência de decréscimo da epidemia”, diz Barreira, que cita a Austrália como exemplo no emprego da Prep para controle da transmissão do HIV. “Se a gente conseguir essa proporção nessas cidades [prioritárias], eliminamos a transmissão vertical.”
Ainda segundo Barreira, o ministério deve buscar parcerias com organizações da sociedade civil para expandir o alcance da Prep a grupos populacionais que tenham dificuldades para acessar serviços de saúde, como pessoas em situação de rua e privadas de liberdade. Um edital deve ser lançado ainda no primeiro semestre de 2024.
Por meio de nota, o Ministério da Saúde disse que promove campanhas de conscientização em diferentes mídias para divulgar a Prep e outros métodos de prevenção contra infecções sexualmente transmissíveis.
LEONARDO ZVARICK / Folhapress